Por Flaviana Serafim
A Secretaria de Administração Penitenciária e o governo estadual seguem fazendo propaganda quanto às medidas de proteção contra o coronavírus no sistema prisional, mas a realidade enfrentada na Penitenciária 1 de Itirapina é mais uma prova de que a realidade é outra. Com três servidores penitenciários e 19 detentos com COVID-19, faltam equipamentos de proteção individual (EPIs) para os trabalhadores e isolamento adequado para os presos.
Os EPI’s fornecidos são em quantidade insuficiente não têm a qualidade e a especificação adequadas para proteção correta dos servidores penitenciários. As máscaras fornecidas não são N95, tipo imprescindível para proteção efetiva das vias respiratórias contra o contágio no ambiente prisional. Faltam óculos de proteção, os aventais também não atendem à especificação de segurança, e os descartáveis que são fornecidos os trabalhadores estão sendo obrigados a lavar para reutilizar.
A ausência de medidas preventivas pela SAP é total quanto ao protocolo necessário na pandemia. Não estão sendo feitos testes do tipo PCR nem nos funcionários nem na população carcerária apesar dos vários casos registrados. A testagem em massa é a orientação principal da Organização Mundial de Saúde (OMS) para ambientes prisionais nos cenários de pandemia, profilaxia que impede que o contágio se alastre ainda mais no sistema. De acordo com a OMS, a situação é considerada de alerta vermelho quanto ao grau de contágio quando o percentual de infectados supera 0,4% de uma determinada população - só na P1 de Itirapina, o índice já é de 2,1% considerando os 902 presos dos regimes fechado e semiaberto.
O cenário é grave, mas transferências de presos para Itirapina continuam sendo feitas normalmente pela SAP, como apontam as diversas denúncias feitas ao SIFUSPESP nos últimos dias. Sem os equipamentos de proteção adequados, mesmo a transferência para atendimento médico é um risco de morte aos policiais penais na escolta.
Isolamento precário, superlotação, omissão de dados e de ações
A Penitenciária 1 tem um único pavilhão e os 19 detentos infectados estão num setor específico, mas sem isolamento adequado porque as seis celas usadas para este fim ficam dentro do raio, separadas apenas por uma parede. Para completar o quadro, só há profissionais para atendimento médico, dentário e de enfermagem na Penitenciária 2 que atendem por meio de uma organização social (OS) num consórcio com o município, mas sem contemplar a Penitenciária 1. A ausência da equipe de saúde na P1 prejudica o atendimento e também o fornecimento de dados para além do coronavírus, pois a equipe médica também é responsável por comunicar diariamente as comorbidades que afetam os detentos do grupo de risco, como os que tem tuberculose, hepatite, HIV, cardiopatia e diabetes.
Outro problema é que até o dia 31 de julho, os boletins epidemiológicos, divulgados oficialmente pela Prefeitura de Itirapina, mostravam os dados por bairro sem constar as duas penitenciárias da cidade, como se as unidades prisionais não estivessem dentro do município, numa omissão de informação que configura crime em meio à gravidade da pandemia. Desde março, os casos apareciam como se estivessem na zona rural, o que ainda gerou pânico nos moradores da área no período.
A situação mudou somente a partir deste 1º de agosto após denúncias, e os dados dos infectados nas prisionais passaram a constar no boletim informativo, mas mesmo assim sem especificar se os casos são da Penitenciária 1 ou 2 e somente com a inclusão dos 19 detentos confirmados até o momento, sem incluir os três servidores infectados.
Como mostram as imagens abaixo, não houve mudança no total de casos confirmados nos dias 31/7 e 1/8, mas os casos na zona rural caíram de 21 para dois de um dia para o outro quando o dado das penitenciárias passou a fazer parte do boletim, e neste 3 de agosto o contágio dos servidores ainda não consta nas informações:
Considerando os regimes fechado e aberto, a Penitenciária 1 de Itirapina tem uma população carcerária de 902 detentos onde a capacidade é para 538, segundo dados da própria SAP. Na Penitenciária 2, a população é de 2.126 onde há 1.388 vagas. Juntas, as unidades têm 3.028 presos quando o máximo deveriam ser 1.926.
SIFUSPESP vai oficiar SAP e diretoria da unidade
A direção do sindicato vai oficiar a SAP e também a diretoria da penitenciária para cobrar medidas de proteção com urgência. “As denúncias que recebemos mostram que a diretoria da unidade e a SAP estão claramente maquiando a situação, escondendo a gravidade do que ocorre na unidade e fechando os olhos irresponsavelmente”, critica Fábio Jabá, presidente do SIFUSPESP.
Para o sindicalista, “é uma aberração a falta de EPIs e os trabalhadores expostos à morte dessa forma. E por que a SAP continua fazendo transferências para Itirapina mesmo ciente desse quadro?”, questiona.
Itirapina integra a Coordenadoria da Região Central do Estado, que segundo apuração do SIFUSPESP é a região que mais concentra casos confirmados de COVID-19 entre os servidores, com 147 casos registrados de março até este 3 de agosto. A segunda mais afetada é a Região Oeste, com 94 casos, seguida da Capital e Região Metropolitana, com 93 trabalhadores infectados.
Por Redação SIFUSPESP
Policiais penais da Penitenciária 1 de Itirapina, no interior paulista, impediram a entrada de 14 celulares, sete baterias e diversos carregadores na unidade.
Na madrugada deste domingo (2), por volta das 3h40, um homem não identificado tentou romper o alambrado de acesso ao semiaberto, mas foi flagrado pelos policiais penais do plantão que impediram a entrada dos ilícitos.
O suspeito fugiu. Na unidade, foi aberto Procedimento Disciplinar para apurar a participação de detentos que receberiam os celulares.
Também filósofo e sociólogo, Oscar Mellim Filho vive entre “dois mundos”, o do jurista e do crítico, e defende que o sistema é galgado no histórico em que “o mal do crime é compensado pelo mal da prisão” e a noção do cumprimento de pena foi colocada em xeque pelo fato de o infrator ser transformado em criminoso dentro do cárcere.
por Giovanni Giocondo
São mais de quarenta anos atuando dentro do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), onde atualmente foi promotor até 1992 e hoje é Procurador de Justiça, recentemente eleito e mais votado entre seus pares para o Órgão Especial do MP. O longo tempo dentro da instituição, para Oscar Mellim Filho, permitiu conhecer as entranhas desse universo dos operadores do direito, e muito além disso, enveredar seus estudos sobre a seletividade dos processos, sentenças e mesmo dos flagrantes policiais que levam, todos os anos, milhares de homens e mulheres para a prisão no Brasil.
Entender enquanto mestre em Filosofia e doutor em Ciências Sociais todas as nuances que envolvem esse espaço, onde o destino dessas pessoas é ratificado, fez com que Mellim escrevesse a tese “Criminalização e Seleção no Sistema Judiciário Penal”. Editada pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), a tese de 2010 se tornou livro e embasa muitas das opiniões deste homem que atesta que esse sistema “incorporou” a ideia de Kant de que “a um mal deve corresponder outro mal”.
Para Oscar Mellim Filho, “promotores e juízes admitiram como regra essa raiz teológica que prega a necessidade de que o infrator tenha de retribuir à sociedade com uma punição - a reclusão e o isolamento - devido ao delito que cometeu, independentemente da gravidade desse delito. Essa compensação está tão entranhada em nós que não conseguimos nos livrar disso”, pondera o procurador, que lembra que tanto esse caráter retributivo quanto a suposta tática de prender para prevenir novos crimes podem ser colocadas em xeque, já que a punição não só não recupera o infrator, “como o transforma em criminoso enquanto a vítima do delito também não vê solução para o seu problema”.
Nesta entrevista exclusiva para o SIFUSPESP - dividida em duas partes, em que falou também da história do encarceramento das populações consideradas “indesejáveis”, da superlotação das prisões a partir da entrada em vigor da lei de drogas de 2006, da influência da imprensa dentro do Poder Judiciário na esfera criminal, da inércia desse mesmo poder diante dos crimes de colarinho branco e mesmo do uso midiático da prisão de grandes empresários e políticos como chave para permitir mais aprisionamento daqueles que já eram punidos, o procurador admite:
“Seguimos determinando a pena de reclusão de acordo com a seletividade sobre os autores, uma seletividade que usa dos estereótipos, do preconceito sobre um perfil de indivíduo, da lei seletiva que prevê penas maiores para crimes que estão ligados à população mais vulnerável, como o roubo, o furto e o tráfico, que estão aí para inundar e superlotar os presídios. Você vai questionar um operador do direito e ele jamais vai assumir isso, porque na retórica técnica diz que todos são iguais perante a lei. Mas basta dar uma olhada nas cadeias e ver. Quem é que perfaz a maioria daqueles que estão presos, senão os negros, jovens e mais pobres?”, provoca.
Confira a seguir a primeira parte da entrevista:
Um pouco da história pessoal, sua relação com o sistema prisional e como chegou ao livro “Criminalização e Seleção no Sistema Judiciário Penal”
Eu tenho 42 anos de carreira, e no Ministério Público eu trabalhei na maior parte do tempo na área criminal, processos criminais, principalmente em segunda instância, que atua perante os tribunais, em São Paulo sobretudo no Tribunal de Justiça do Estado, por onde tramitam os processos em grau de recurso de primeira instância, os processos criminais, inclusive os processos de execução penal, tratando dos direitos dos presos.
Minha primeira formação é em Direito pela USP, mas depois de algum tempo, eu fiz mestrado em Filosofia e doutorado em Ciências Sociais na PUC-SP. E tanto na filosofia quanto nas ciências sociais, minha área de pesquisa de muitos anos é a área da pena, da punição, do castigo, isso é uma cruz que me acompanha. Ao longo da minha vida me interesso muito por essa discussão, uma discussão teórica.
E a minha atividade como Procurador de Justiça, durante muitos anos eu fui aproveitando esses recursos em grau de processo e fazendo uma pesquisa de campo, pessoal, anotações. A intenção era traçar um retrato do sistema pela ótica dos seus operadores jurídicos, que são os promotores e juízes, e a própria ciência do direito, ou seja, como funciona na prática, as condutas e as atuações dos promotores e dos juízes na aplicação das penas, na condenação e na absolvição.
Então eu fiz essa pesquisa e resultou que na minha tese de doutorado na PUC-SP no curso de Ciências Sociais, onde me engajei em um grupo que estuda esse assunto na área da política, da ciência política e da sociologia, e apresentei esse trabalho que foi aceito e que resultou nesse livro, que foi editado pelo IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais). O IBCCRIM é uma instituição que tem muito a ver com essa atuação na área criminal com uma visão crítica, ao contrário da atuação puramente jurídica dos operadores.
Falar do sistema penal no campo do direito e dos operadores do direito, com advogados, juízes, promotores, entramos em uma discussão que a gente chama mais de dogmática, mais jurídica, mais legalista. Enquanto que na sociologia, na política, na filosofia, uma discussão mais sobre os fundamentos.
E eu vivo nesses dois mundos, tanto como operador do direito, como jurista, e também nessa visão. Isso resultou nesse trabalho que eu apresentei, e enfim, essa é a minha história. Mas de fato eu vivo em uma divisão. Em uma divisão de uma visão muito crítica do sistema, ao mesmo tempo trabalhando dentro dele.
Por que e quando o Judiciário começou a adotar o aprisionamento como regra?
É uma questão histórica, no caso da prisão, não é a pena por excelência ao longo da história do direito penal. A gente costuma dizer que a pena de prisão é relativamente recente. É do século XVII, XVIII. Antes dessa época, nós tínhamos as penas corporais, as penas capitais, uma sociedade que punia as pessoas com a morte, com a lesão, com a agressão.
A prisão entra aí pelo século XVIII por razões políticas, econômicas, de uma sociedade que buscava isolar um grande número de pessoas, recuperar essas pessoas, não fazer mal para essas pessoas no sentido de fazer uma retribuição mortal, vamos dizer assim.
Aquilo que determinou o nascimento da prisão seria a prisão como uma medida, como uma punição, mas uma punição com características de medida para trazer o autor do crime para o seio da sociedade, não para salvar a alma dele, ao contrário, para fazer com que ele se submetesse a essa sociedade e agisse corretamente dentro dessa sociedade, para que a sociedade obtivesse um bom proveito dele.
A prisão tem uma história que é identificada como humanização, comparando com as penas capitais que havia antigamente, com os espetáculos dantescos, de tortura e de morte. E esse modelo da prisão se tornou definitivo. A prisão vem para recuperar, para inserir na sociedade. Isso é a visão original dela, mas ela nunca fez isso, ela não preenche essa função. A função dela é outra, de definir determinadas pessoas, trazer determinadas pessoas para o mundo do crime.
Os promotores, juízes e outros profissionais que trabalham na área incorporaram essa visão punitivista. Filosoficamente, essa visão nasce naquela ideia de retribuição, que é algo que não nos deixou ainda, em termos amplos, não apenas no direito penal. Alguém fez um mal, tem que pagar por ele. Isso tem uma raiz teológica, muito antiga, da qual nós não nos livramos.
Na modernidade essa visão religiosa foi instituída como filosofia no pensamento de Immanuel Kant e Friedrich Hegel. “A um mal tem que corresponder um outro mal”. Isso incorporou de tal maneira, nós não conseguimos nos livrar dessa ligação. É preciso que tenha uma resposta e o mal da pena compensa o mal do crime.
Os operadores do direito assumiram isso, isso está tão entranhado dentro de nós todos que se torna indiscutível a necessidade de punição. Então a esse retributivismo foi associado uma outra teoria na época do iluminismo que era o prevencionismo, ou seja, além de punir, a pena serve para prevenir novos crimes. Você punindo a pessoa, está prevenindo que haja outros crimes. Isso também penetrou.
Hoje no nosso Código Penal, artigo 59, diz que a função da pena é de reprimir, recuperar e prevenir. Aí entra a contradição. Como que você vai recuperar uma pessoa reprimindo? A ideia de recuperação, que é a ideia da prisão, de recuperar para a sociedade, hoje nós já sabemos que o objetivo verdadeiro dela não é recuperar, é marcar. É isso que ainda reside na nossa cabeça, a ideia de que ela vai recuperar. Mas isso está tão desmoralizado, mais contemporaneamente, inclusive no Brasil já quase não se fala nisso.
Basta olhar para o sistema penitenciário para ver que não vai recuperar ninguém. Essa história da recuperação, que é uma outra tese bonita. Agora isso de reprimir, de retribuir, e de prevenir novos crimes são as duas balizas, e que também são contraditórias, ou seja, retribuir o mal com o mal, e com isso prevenir que haja novos crimes, empiricamente falando, também não se apresentou como uma solução suficiente.
A identidade dos operadores do direito e o que a sociedade brasileira espera deles
Ao fazer uma análise sociológica das profissões, de suas identidades, daquilo que alguns sociólogos chamam de reconhecimento, encontramos o Ministério Público e a Justiça na área criminal. Esse é o papel de juízes e promotores. É por isso que uma visão crítica que coloca em xeque o trabalho dos operadores do direito não é aceita.
Na sentença dos juízes, você observa em todas elas, no finalzinho na hora de aplicar a pena aparecem essas duas expressões: É preciso retribuir, e é preciso fazendo assim que se previnam novos crimes. Toda sentença aparece. Se você coloca em xeque as duas, e as duas podem ser questionadas, você as destrói, derruba o edifício dessa atuação social, e que é a própria sociedade que exige a punição, a retribuição, que é uma herança teológica, de punir o mal com o mal e de prevenir tornando o infrator como exemplo.
Tanto os promotores quanto os juízes criminais não se livram disso. Daí a dificuldade em aceitar outras formas de composição de conflitos criminais que não tenha a retribuição, e que não tenha essa possibilidade da prevenção.
São os papéis. É difícil sair desses papéis. Daí a dificuldade de soluções negociadas quando se fala em crime. Quando se fala em questão civil, se admite. Quando se fala em crime, opa! aqui não tem negociação. Aqui tem que ter uma retribuição. Tem que ter uma pena, o sujeito tem que sofrer, tem que sofrer na pele. Não quero terrorismo, não quero agressão, não quero pena de morte, mas ele tem que ser isolado e aí tem também um componente teológico, que esse componente nasce da questão do fechamento, ou seja, de o sujeito ser colocado em um quarto para ele refletir e se arrepender e pedir perdão.
Ele tem que ficar isolado, ele tem que colocar a cabeça para funcionar e aí então ele será recuperado na prisão, e que socialmente falando é um absurdo. Ninguém vai se recuperar socialmente ficando encarcerado. Para se recuperar socialmente, tem que viver socialmente. A consciência dele vai trabalhar para que ele se arrependa e ele se incorpore.
Esse é um componente religioso, mas que não faz sentido lógico. E os presídios vivem esse drama, de encarcerar, fechar, para eles terem essa reflexão, mas ao mesmo tempo prepará-los para a vida em sociedade e recuperá-los. Mas de que jeito? Fica esse jogo. E os modelos de progressão de pena trabalham muito com isso. Encarcerar primeiro, bastante, que aí a retribuição tem que ser forte, e aí aos poucos, você abrir a possibilidade dele se reintegrar, que são as progressões de regime. Nós não conseguimos nos livrar dessa contradição.
Agora os operadores do direito, como medida de auto salvação e de reconhecimento procuram evitar essa discussão. Eles dizem que isso é “questão de filósofo” e que não resolve. “Essa não é minha função, nós temos que resolver o problema agora.” Tecnicamente, e acaba desembocando na questão do encarceramento. De quem? Vamos fazer uma escolha entre os mais graves, aqueles que colocam mais em risco a sociedade.
Quem realmente está preso e por quais crimes? Uma relação entre história e atualidade
Aí entra o componente que eu chamo de seletividade. Quem é que nós vamos botar na prisão? Aí a gente tem que voltar um pouco na história da prisão. Para quem foi criada a prisão? Certamente não foi para os proprietários de áreas rurais que praticavam crimes, ou para os religiosos, ou para os empresários da época. Na verdade, a prisão se justificava lá no século XVII e XVIII para aquele contingente muito grande de pessoas que vieram da zona rural no início da revolução industrial nas cidades, e criou aquela legião de miseráveis, de desempregados.
Então para essas pessoas que não estão inseridas no sistema, nós vamos encarcerá-los e vamos treiná-los para que eles possam se inserir na sociedade. A seleção começa aí. A prisão foi feita para eles, é difícil pensar que ela foi feita para cidadãos de classe média e empresários. Até hoje temos dificuldade de olhar para um cidadão de classe média ou um empresário rico preso dentro de uma cela.
De uma maneira bem simples, embora tenhamos o desejo, ficamos até contentes quando vemos um empresário preso, finalmente passa a se fazer “justiça”, não casa bem, a prisão não casa com ele, não foi feita pra ele. E o sistema jurídico brasileiro, o sistema penal também não foi feito para aplicar pena de prisão para ele. E nem para condená-lo pela prática dos crimes. Transformar os chamados “crimes do colarinho branco” em sentenças condenatórias que resultam em prisão também não é uma tarefa fácil.
Ao contrário daqueles desempregados que andavam pelas ruas praticando furto, roubo, crimes sexuais, homicídio, e que modernamente é o tráfico de drogas, a venda de drogas e o consumo de drogas, ou seja, é preciso fazer todo um malabarismo técnico-jurídico para trazer as pessoas para dentro do presídio. Ainda que tenhamos a boa vontade politicamente preparados para fazer isso, é preciso mudar o sistema judiciário, o sistema penal, o sistema de prova. Por que eles(empresários) não estão na prisão? A prisão foi feita para eles? Historicamente não, não foi feita para eles.
Como a história da prisão é ligada aos rejeitados, ela atravessou os séculos. No mundo em que nós vivemos, e aí é que eu entro na questão da seleção, da seletividade. Primeiro que a seleção é feita pelas leis. As leis penais definem pena de prisão e penas maiores para crimes patrimoniais e para crimes que têm mais a ver com essa população pobre, inclusive a população de etnia negra, socialmente vulnerável. De que maneira essa seleção entra no sistema penal?
Primeiro que a definição dos crimes e das penas está mais próxima dessa população. Delitos praticados por pessoas brancas, ricas e bem postadas socialmente normalmente se afastam dessa categoria de crimes e a própria lei estabelece possibilidades do não cumprimento da pena de prisão. Penas alternativas, ou não penas, seriam problemas civis.
Na verdade, a primeira grande seleção está entre o civil e o penal. O que é o civil e o que é o penal? Na verdade não há uma separação clara entre o que o civil e o que é o penal. Quem estabelece essa separação é a própria sociedade, os legisladores quando fazem as leis, o que é uma questão civil e o que é uma questão criminal. Mas ontologicamente falando não há diferença. São ilícitos, o civil e o penal. Há situações em que elas são muito próximas, estão em uma zona de confluência.
Os acusadores, os promotores e os juízes entram nessa toada, agindo da mesma maneira, e também a polícia. O contato inicial com os autores de crimes normalmente é feito pelos policiais. A polícia faz a primeira seleção. Então entre essa do civil e do penal, o policial faz essa primeira seleção no sentido de levar para a delegacia uns e não levar outros. Uma pessoa branca e de classe média se for surpreendida na rua por policiais, muito dificilmente vai ser levada para uma delegacia, por algum motivo, e uma outra pessoa, com uma outra característica, vai ser levada com mais facilidade.
A população pobre, primeiro, está mais visível. Os crimes que ela pratica são crimes mais visíveis. É o furto, é o roubo, são crimes patrimoniais. Os crimes praticados pela população avantajada financeiramente não são visíveis, aliás é muito difícil constatá-los. No caso do furto, alguém que é surpreendido na rua com um objeto furtado, pronto. A coisa mais simples do mundo. Ele está preso e o crime está caracterizado praticamente. Nós temos uma prova fortíssima.
No caso dos crimes de colarinho branco, essa prova é muito difícil de se fazer. Ele não está na rua com o produto do crime, correto? Salvo esses casos excepcionais em que estão carregando mala de dinheiro. Então tanto os juízes quanto os promotores trabalham diariamente com essa divisão que vem da seleção feita pelos policiais. E racialmente falando também. População vulnerável, população negra, próxima dessa prática desses crimes patrimoniais principalmente. E são os estereótipos. O policial trabalha com estereótipos.
Exemplo: Se eu tiver meio quilo de cocaína dentro do meu carro, e for parado por policiais, muito dificilmente ele vai desconfiar que eu tenha a droga, pelo meu perfil, muito dificilmente. Se pegar outro indivíduo e colocar no meu lugar, se for uma pessoa da raça negra, certamente a diligência vai ser diferente. Aquilo que já se dizia e sempre se diz isso. Se entrar em um apartamento em Copacabana ou em uma comunidade do Rio de Janeiro? Se entrar no apartamento em Copacabana não vai encontrar droga? Evidentemente que pode encontrar. Mas a atuação se faz mais nas comunidades pobres.
Isso está tão entranhado também entre os réus que, tanto para o MP quanto para a magistratura se torna natural. Acaba até dizendo assim espontaneamente fazendo uma relação e um juízo de valor da pessoa a partir da cor da pele, do perfil, de onde ele mora.
E hoje nós temos inúmeros exemplos, embora a comunidade jurídica, com todos os avanços na questão dos direitos humanos, procure escapar disso, volta e meia escapa uma frase dessas. Em uma sentença do juiz, em um acórdão do Tribunal de Justiça.
Há pouco tempo aconteceu em Campinas, uma juíza que condenou um empresário branco, por um crime grave, e ela colocou na sentença: “Apesar de ele não ter o perfil de um criminoso”, E o condenou a uma pena alta. E esse “apesar” escapou. Mas nas conversas de corredor ele não escapa. Em toda conversa de corredor ele é o tema da conversa. Ouvimos isso diariamente.
Então essa seletividade do juiz e do promotor, por mais consciente que ele esteja da igualdade da lei, que a lei não pode fazer distinção de pessoas, essa seleção que vem lá da polícia e que passa por eles, essa seleção acaba constatando essa desigualdade aí na aplicação das penas e na análise das provas, da tipicidade dos crimes.
O infrator transformado em criminoso pela própria prisão
O Michel Foucault tem uma frase muito interessante, ele que é um grande estudioso dessa questão e um dos meus orientadores doutrinários. A prisão serve para transformar os infratores em criminosos. Você pega o infrator, bota ele na prisão, e a partir daí ele vai se transformar em um criminoso. O sistema precisa transformá-lo num criminoso. Rotular. Aí você separa. Aqui você tem os infratores. Os infratores quem são? Somos nós. Faz parte da vida. Infringir a lei penal não é nem de longe uma situação excepcional. É uma situação até corriqueira. Agora transformar esse infrator num criminoso, esse é o papel da prisão.
A pessoa que tem um transtorno mental e que vive com esse transtorno cotidianamente. Como ele era transformado em um “louco”? Internava-se no manicômio. Bastou colocar uma pedra em cima do sistema de internação obrigatória, o movimento antimanicomial dos anos 1960 e 1970, essa população está aí, e os manicômios estão vazios. E daí, o mundo não acabou.
A lei de drogas é poderosíssima porque ela dá a arma para o policial fazer a escolha e prender e não tem chance. Preso, ele vai ser condenado. E é um crime visível. A pessoa está na rua. Ou está na casa dela. Mas qual casa? Onde eles entram? Se chegar em São Paulo no Jardim Europa e entrar em todos aqueles apartamentos ao mesmo tempo, vai encontrar muita droga, e vai dar muita condenação por tráfico. Daria. Mas isso não vai acontecer, não pode acontecer. Não é essa a função do direito penal. A função dele é outra.
Mudanças de perspectivas do Judiciário para reduzir a população carcerária
Na verdade, o sistema penal vive também uma gangorra. Quando esse sistema começa a entrar em uma elipse, isso aconteceu nos últimos anos, acontece o seguinte: Excesso de presos, é preciso desovar um pouco desses presos, diminuir, por razões econômicas, razões sociais, e aí você faz uma alteração na lei, na lei processual, ou na lei de execução, de forma que você permita algumas aberturas de redução de pena, de benefícios no caso da execução penal, que acontece na progressão de regime, livramento da condicional, na descriminalização de algumas condutas, isso acontece.
Ao longo da história aconteceu algumas vezes. Logo em seguida, ou algum tempo depois, há um recrudescimento da criminalidade ou da policialização da sociedade ou alguma coisa nesse sentido, e isso retorna para o patamar anterior, você tem uma nova modificação de lei, para aumentar as penas, a gente vive, eu vivo desde que trabalho na área, acompanhando isso. Às vezes elas convivem na mesma época, a lei aumentando a pena de alguns crimes e reduzindo de outros.
Agora para resolver o problema precisaria, primeiro, de autocrítica. Autocrítica no sistema é muito difícil, em um sistema que está assim tão solidificado. Seja do policial, seja Ministério Público, seja do poder Judiciário. No caso por exemplo das drogas, da lei de drogas. Falar isso para um grupo de juízes de um perfil mais conservador, eles simplesmente levantam e vão embora. Precisaria mudar isso. De que jeito? Dessa mistura, do Estudo vamos dizer assim, deixar um pouco essa vertente dogmática de tratar a lei e o processo penal e passar a ter essa reflexão social e política que para nós não é fácil.
Segundo. Aí é um movimento interessante da busca de penas alternativas que também não são fáceis, porque teria que abrir mão dessa figura histórica do acusador e do juiz, que tem que condenar e que tem que absolver. E sobretudo, abrir mão dessa questão de que a prática de um crime deve levar a um processo e deve levar a uma condenação. E aí uma outra coisa que está mais por trás ainda e que é uma construção mais antiga e até diabólica. O crime é um crime contra a sociedade. E a sociedade não pode negociar com o crime. Que é uma visão também religiosa. Como negociar com o demônio? Enquanto não mudarmos isso, não vai ter solução.
Agora alguns mecanismos acabam surgindo, por exemplo essa ideia da negociação, da transação, desse acordo de não persecução. Discutir é a melhor solução. Mas nós não aceitamos discutir, acreditamos que não tem o que discutir. Um sujeito que furtou um objeto da minha casa, eu não posso fazer um acordo com ele porque não sou eu a vítima. A vítima é a sociedade, e a sociedade não pode fazer acordo com ladrão. É o que se diz.
Consequência? Vai ter um processo penal, uma condenação e uma prisão. Mas isso poderia ser resolvido por outras maneiras? Acho que sim. Não é perigoso? Nós temos que dar esse passo. O mundo todo está dando esse passo. Nós já demos alguns, tivemos algum progresso nesse sentido. Leis que permitem essa transação, essa negociação.
Os americanos não têm essa cabeça, eles aceitam negociar isso, conversar. Como na nossa vida, a nossa vida é negociação diária, tudo, e com coisas graves, nós negociamos coisas graves que acontecem com a gente, e não podemos negociar com o autor do crime de roubo, ou de furto, alguma coisa nesse sentido. Então a saída é transformar, abolir essa transformação necessária e física, quântica, entre o crime e a pena.
A pena é uma tentativa de solução. Uma. A pior de todas. Resolve o que? Resolve nada. Para a vítima não resolve. Para o réu não resolve. Para a sociedade resolve? A pena de prisão? Resolve no sentido de isolar determinadas pessoas por algum tempo. Acho que há de fato situações em que é necessário fazer isso - isolamento, reclusão. Assim como é necessária a internação do paciente psiquiátrico extremamente grave. Há situações excepcionais. Então a solução é mudança de mentalidade. Primeiro a autocrítica, segundo essa mudança de mentalidade no sentido de achar fórmulas de resolver esses conflitos.
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