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O viés da PEC da reforma administrativa não é a melhoria do serviço, mas a sua precarização para justificar a privatização

 

Por Vilobaldo Adelídio de Carvalho

Em meio ao debate atual sobre a Proposta de Emenda à Constituição - PEC nº 32/2020, vendida espuriamente como o “novo serviço público” no Brasil, é preciso salientar que desde o processo de colonização no país tem-se uma forma ímpar de apropriação do público pelo privado, iniciando com as “Capitanias Hereditárias”, passando pelo “Governo Geral”, que perdurou até a instalação da Corte Portuguesa em 1808, quando, de fato, surge o serviço público no Brasil, ainda no contexto do liberalismo econômico. Nesse processo, a administração pública brasileira sempre foi permeada pelo patrimonialismo, patriarcalismo e personalismo; a cultura do mandonismo. Neste contexto, apesar da complexidade do tema, propõe-se nestas poucas linhas tecer algumas reflexões acerca da PEC nº 32/2020 e seus possíveis reflexos no serviço público brasileiro.

Em verdade, a “Deforma” que ora se discute (posto desta forma por que se propaga uma “Reforma Administrativa”, mas a proposta configura tacitamente o desmonte ou a implosão do já precarizado serviço público brasileiro) busca modificar a relação Estado/sociedade/indivíduo, porém mantendo intactos velhos problemas. A ideia central é retirar do Estado a obrigação na oferta de serviços públicos, ampliando-se as possibilidades de apropriação do público pelo privado. O problema é que a relação entre o público e o privado no Brasil tem sido historicamente promíscua. A corrupção endêmica, aflorada com a “Operação Lava Jato”, por exemplo, representa prova cabal dessa imoralidade. Ao invés de reformar a estrutura administrativa do Estado e a gestão pública, objetivando estancar a sangria decorrente do aparelhamento político-partidário do Estado, o ideário inescrupuloso e privatista da “Deforma” elegeu o servidor público como “saco de pancadas”, como um vilão que precisa ser dizimado, exceto aqueles considerados “superiores”. A proposta não ataca alguns aspectos que precisam ser urgentemente melhorados: a qualificação do serviço público, a valorização dos servidores públicos e o cerco ao ilegal, absurdo e inescrupuloso desvio de recursos públicos. O viés é meramente mercadológico. Isso está expresso no conteúdo da proposta.

O debate sobre a “Nova Administração Pública”, na década de 1990, resultou na Emenda Constitucional 19/1998. O ideário foi permeado pela concepção de que era preciso implementar o gerencialismo na administração pública, trazendo preceitos da iniciativa privada para o serviço público. Evidentemente, o quadro não mudou e muitos serviços públicos no Brasil continuaram precários. Entretanto, em nenhum momento, se discutiu adotar um Estatuto da Gestão Pública que imponha penalizações mais duras a maus gestores e servidores, preveja um quadro mínimo de servidores, garanta condições adequadas de trabalho e estabeleça metas quantitativas e qualitativas.

Ao contrário, em seguida veio a Emenda Constitucional 95/2016, apelidada cinicamente de “Teto de Gastos”, quando, na verdade, significa imposição a investimentos, uma vez que despesas com saúde, educação, segurança pública, assistencial social etc; representam investimentos para a oferta e melhoria na qualidade dos serviços públicos e de vida da população e não “gasto”. Seria “Teto de Gastos” se tivesse imposto limites ao pagamento desonesto e espúrio de gastos com juros e amortização da dívida pública, que corrói praticamente 40% do orçamento público federal anualmente e não gera retorno ao desenvolvimento do país. Posteriormente, já no atual governo, veio a PEC 186/2019, que resultou na Emenda Constitucional 109/2020. Com a PEC 32/2020 fecha-se um ciclo da maldade que em breve acentuará os resultados danosos que já vem ocorrendo na oferta e qualidade dos serviços públicos no Brasil, com verdadeira implosão do serviço público.

Apesar do discurso propagado de que a PEC 32 objetiva aperfeiçoar a administração pública para melhorar a qualidade dos serviços ofertados, o conteúdo da proposta traz uma diversidade de dispositivos justamente contrários. A modalidade de cargos por tempo determinado (art. 39-A, II) e cargo de liderança e assessoramento (art. 39-A, V), na verdade, enfraquece severamente os aspectos da tecnicidade e garantia da implementação de políticas públicas de Estado e elege como prioridade perspectivas de um aparelhamento político-partidário ainda maior da administração pública no país.

Outro discurso falacioso da PEC 32/2020 é de que a proposta tem por objetivo acabar com “privilégios”. Porém, não inclui o membro de poder em nenhum de seus pontos. Mas ataca a questão da estabilidade do servidor público, essencial à segurança jurídica e independência técnica e política do servidor, exceto para os ocupantes de “cargo de típico de Estado” (art. 39-A, IV), que a proposta indica que será uma minoria, definida posteriormente por lei. Aliás, essa denominação, de forma expressa, deixa claro que a ideia da proposta é que se tenha na administração pública, em sua maioria, “cargos típicos de Governo”, ou seja, um claro ideário de politização da administração pública que pode gerar descontinuidade e instabilidade nas políticas públicas, com prejuízos à quantidade na oferta e na qualidade dos serviços públicos e, em consequência, para a sociedade, principalmente a mais carente, que necessita desses serviços.

Com efeito, a PEC 32/2020 traz clara demonstração de que seu propósito principal é o desmonte das políticas de Estado, com o enfraquecimento de políticas públicas essenciais à cidadania e, por consequência, a precarização dos serviços públicos para poder justificar a sua posterior privatização. Mas, antes disso, já estabelece mecanismos de apropriação do setor público pelo privado, reforçando os vícios da administração pública brasileira, especialmente no que tange à politicagem e suas repercussões nas estruturas do poder, ampliando assim a possibilidades fortalecimento de indicações políticas para cargos públicos e desvio dos recursos.

Os mecanismos de punição de servidores públicos que porventura desviem de condutas ou apresentem baixa produtividade, já se encontram devidamente assentadas no ordenamento jurídico pátrio. Evidentemente, seria importante aperfeiçoar tais regras para agravar penas para servidores que eventualmente desviem de conduta, aperfeiçoar os mecanismos de controle, estabelecer um Estatuto da Gestão Pública e, principalmente, desgarrar a gestão pública do apadrinhamento político que corrompe a administração pública brasileira e retroalimenta o viciado ciclo político, como tem sido estampado em diversas operações policiais e denúncias de desvios de recursos públicos.

Por fim, a proposta da PEC nº 32/2020 é como se tivesse um paciente (o serviço público) com várias doenças: a má gestão, a corrupção, o velho patriarcalismo, patrimonialismo, personalismo e, ao invés de se aplicar um remédio neste paciente, se retirassem os aparelhos da UTI, que ainda mantêm o paciente vivo, ou seja, os servidores públicos. Essas características significam mecanismos de dominação política que permanecem e impedem a oferta de um serviço público de qualidade. Resumidamente, o viés da PEC não é a melhoria do serviço, mas a sua precarização para justificar a privatização. Representa não apenas um ataque aos servidores públicos, mas, principalmente abre espaços para ampliar a apropriação do público pelo privado e o aparelhamento político do Estado, com fomento para a corrupção e manutenção intacta da estrutura de dominação política. Enfim, configura o ideário de uma verdadeira implosão do serviço público, com reais possibilidades provocar resultados extremamente danosos, especialmente à sociedade mais carente, que depende de serviços essenciais e necessitam ter a sua qualidade urgentemente melhorada.

*Vilobaldo Adelídio de Carvalho é diretor da FENASPPEN e conselheiro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP). Mestre em Políticas Públicas e graduando em Direito na UESPI – Universidade Estadual do Piauí

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