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Por Arlindo da Silva Lourenço

Duas meninas brincavam na rua, próximas de casa, na noite de sexta-feira, dia 4 de dezembro e tudo parecia normal na periferia do Rio de Janeiro. Aquela era mais uma noite de calor em Duque de Caxias e as primas Rebecca Beatriz Rodrigues Santos, de sete anos e Emilly Victoria da Silva Moreira Santos, de 4 anos, não podiam imaginar, como também não imaginavam todos que ali estavam, que aquela seria uma noite muito trágica. De repente, escutam-se barulhos como se tiros fossem e, de fato, logo depois as duas meninas jazem sangrando no chão, ambas atingidas por cartuchos de fuzil.

Socorridas de imediato pelos próprios moradores ali presentes, não resistiram e faleceram pouco tempo depois. Segundo observadores, foi de um carro da polícia militar do Rio de Janeiro a fonte dos disparos. Já a corporação militar, sem desmentir de todo o fato, alega que havia uma perseguição a bandidos em andamento naquele instante com troca de tiros entre estes e os policiais.

Mais do que a ausência dos supostos bandidos na cena trágica demonstrado pelos moradores presentes no local, o assassinato de Rebecca e Emilly de forma tão estúpida, cabal, mesquinha e tacanha, por forças que deveriam protegê-las, é mais um episódio triste de um país deprimente, vulgar e extremamente desrespeitoso com os mais vulneráveis.

O assassinato de Rebecca e Emilly, duas crianças que sonhavam enquanto brincavam, porque é assim que as crianças brincam, se soma ao assassinato de tantos e tantas crianças e adolescentes neste país de muitos patifes, cafajestes, mentirosos, covardes e fascistas.

Desde 1980, segundo estudo que veio à público no Atlas da Violência de 2020 (1), mais de 265 mil crianças e adolescentes, de zero a 19 anos, sofreram homicídio, indicando o que se conceitua, no Atlas e em alguns estudos, como infância perdida ou infância roubada no Brasil.

No final de semana anterior a esse brutal assassinato de Rebecca e Emilly, participando de uma live organizada pela Liga Acadêmica de Psicanálise e Psicopatologia da Uninove, discutíamos o compromisso da Psicologia e da Psicanálise em Tempos Sombrios e eu chamava a atenção, justamente, para o fato de que, se alguém têm dúvidas de que o tempo em que vivemos é sombrio, esse fato (que ainda não havia acontecido, mas outros, anteriores, davam conta das sombras em que estamos envoltos) não nos deixa dúvida alguma.

Devemos reconhecer que o Brasil tem problemas estruturais e institucionais graves que assolam, em especial, o povo mais simples, tais como o racismo, o aprisionamento em massa de populações pobres e periféricas, o genocídio da população negra, o feminicídio e todo tipo de violência contra a mulher, a fome, a miserabilização de camadas cada vez mais amplas da população e a criminalização de condutas visando o controle dos corpos e, mais ainda, a possibilidade de identificação, por parte dos detentores de poder, dos “corpos matáveis” - uma expressão encontrada já em Giorgio Agambem (2), famoso jurista e filósofo italiano -, no que Achille Mbembe, filósofo, teórico político, historiador e intelectual camaronês incorpora em seu conceito mais recente de Necropolítica (3), a partir das análises de Michel Foucault sobre o biopoder ou a biopolítica (4).

Também para não deixar dúvidas da vileza nossa de cada dia, é importante mencionar, ainda no campo da infância e adolescência, que o Brasil não consegue romper o ciclo mortal do trabalho infantil, apesar de inegáveis avanços legais e institucionais com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente: segundo dados existentes no site oficial da Abrinq (5), por volta de 2,6 milhões de crianças e adolescentes estão expostos a este tipo de exploração que, como sabemos, reduzem os anos de vida dos atingidos/as, como as suas potencialidades físicas.

Alguns desses meninos e meninas, por meio da coerção à essa prática que se dá em condições muito pauperizadas e que, além de ilegal é imoral, sofrem acidentes e se incapacitam para uma vida laboral no futuro: de 2007 até 2019, foram 46.507 acidentes de trabalho; 27.924 foram considerados graves, com 279 óbitos. 

Deve-se ressaltar que alguns desses graves problemas em âmbito nacional não são invenção recente, mas inscritos na formação do estado brasileiro desde a sua origem colonizadora, repressora, militarista e escravagista, como o racismo, o machismo e o patriarcado, por exemplo.

A expressão “Tempos Sombrios” foi utilizada já em 1939 por Bertold Brecht, num poema chamado “Aos que vão nascer” (este é o único poema que foi proferido pelo próprio Brecht ainda em vida) e que ficou conhecido por aqui como “Aos que vierem depois de nós” e por Hannah Arendt (6), num livro escrito por ela ainda nos anos do pós guerra (1968) e em que a filósofa judia de origem alemã emigrada nos Estados Unidos em razão da perseguição nazista contra o povo judeu resenha a vida de homens e mulheres (na verdade, a única mulher comentada nesse livro é Rosa Luxemburgo) naqueles tempos em que a humanidade se via assolada por totalitarismos de expressões variadas, tais como o fascismo, o nazismo e o stalinismo. No prefácio desse livro, em janeiro de 1968, Arendt escreve:

Quando pensamos em tempos sombrios e nas pessoas que neles viveram e se moveram, temos de levar em consideração também essa camuflagem que emanava e se difundia a partir do stablishment – ou do ‘sistema’ como então se chamava. Se a função do âmbito público é iluminar os assuntos dos homens, proporcionando um espaço de aparições onde podem mostrar, por atos e palavras, pelo melhor e pelo pior, quem são e o que podem fazer, as sombras chegam quando essa luz se extingue por ‘fossos de credibilidade’ e ‘governos invisíveis’, pelo discurso que não revela o que é, mas o varre para sob o tapete, com exortações, morais ou não, que, sob o pretexto de sustentar antigas verdades, degradam toda a verdade a uma trivialidade sem sentido (ARENDT, 2008, p. 8).

Não nos damos conta da gravidade de acontecimentos como o que acabou com os sonhos das primas Rebecca e Emilly e que trouxe, para familiares e conhecidos, dores, no corpo e na alma, pela perda prematura e violenta de duas meninas que não podiam saber a tragédia que as espreitava; dores que não cessarão simplesmente. Se serve de consolo, a mesma Hannah Arendt nos pode ajudar:

(...) mesmo no tempo mais sombrio temos o direito de esperar alguma iluminação, e que tal iluminação pode bem provir, menos de teorias e conceitos, e mais da luz incerta, bruxuleante e frequentemente fraca que alguns homens e mulheres, nas suas vidas e obras, farão brilhar em quase todas as circunstâncias e irradiarão pelo tempo que lhes foi dado na Terra. (...) olhos tão habituados às sombras, como os nossos, dificilmente conseguirão dizer se sua luz era a luz de uma vela ou a de um sol resplandecente (ARENDT, 2008, p. 9).

Queremos dizer que a morte precoce de Rebecca e Emilly e de tantos e tantas crianças pelo Brasil afora não podem cair no esquecimento e os assassinos não podem simplesmente escapar impunes, sejam eles pessoas ou representem uma instituição, como a Polícia Militar. Queremos dizer que enquanto tombarem vítimas inocentes de uma guerra genocida, vozes ressoarão clamando por justiça neste país e homens e mulheres de todas as raças, de todos os sexos, de todas as idades, lutarão por um mundo novo, onde crianças poderão, sim, brincar e sonhar na rua, sem medo de ser feliz!

Concluindo, gostaria de retomar uma expressão de Eduardo Galeano (7), famoso poeta uruguaio: “este mundo de merda está grávido de outro”. Tem-se que acreditar nisto, sob risco de perder a coragem! E, para terminar, sugiro aos e às colegas leitoras/es que leiam o artigo de Nilma Lino Gomes, ex-ministra do Ministério de Mulheres, Igualdade Racial, Juventude e Direitos Humanos no governo de Dilma Rousseff., cujo título que nos diz muito sobre o Brasil que temos hoje: “O país que extermina crianças e adolescentes negros já está morto”. Está disponível em: https://midianinja.org/nilmalinogomes/o-pais-que-extermina-criancas-e-adolescentes-negros-ja-esta-morto/.

Rebecca e Emilly e todas as crianças e adolescentes com suas vidas ceifadas, presentes, SEMPRE!

Arlindo da Silva Lourenço é doutor em Psicologia e autor do livro “O Espaço de Vida do Agente de Segurança Penitenciária no Cárcere”

 

Referências:

1) Atlas da Violência. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/atlas-da-violencia-2020.
2) AGAMBEN, G. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua (2a ed.). Belo Horizonte, MG: Editora UFMG, 2009.
3) MBEMBE, A. Necropolítica. Arte e Ensaios, (32), 123-151, 2016.
4) FOUCAULT, M. (2005). Em defesa da sociedade. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2005.
5) https://www.naoaotrabalhoinfantil.org.br/o-que-e-trabalho-infantil.
6) ARENDT, H. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
7) Entrevista gravada com Eduardo Galeano. Disponível em: https://quemtemmedodademocracia.com/2011/06 

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