Quando o jornalista não investiga as nuances do que acontece na rotina de uma penitenciária, a credibilidade da informação vira mero achismo, e a audiência se debruça sobre fatos inexistentes
por Marc Souza
Na manhã desta terça-feira, dia 12 de abril, o jornalista e apresentador do Jornal Bom Dia São Paulo, da Rede Globo, ao apresentar uma matéria sobre uma blitz (revista) que estava ocorrendo no Centro de Detenção Provisória do Belém II, em São Paulo, fez tudo o que um jornalismo sério e de qualidade não deve fazer: acusações levianas, infundadas e sem provas, ofendendo toda uma categoria de trabalhadores.
Em suas divagações, ao vivo, o jornalista repetiu de forma insistente frases acusatórias contra os trabalhadores, sem qualquer evidência da veracidade de suas acusações. Frases como: - “A gente tem que observar que é fogo amigo né! A gente vê o trabalho destes policiais na tentativa de encontrar algo, mas certamente é algo que alguém que controla a entrada, o fluxo na cadeia deixou entrar. Se é num lugar sério, se é num lugar sério não existe este tipo de operação de ficar revistando cela. Porque as coisas não nascem dentro da cadeia. As coisas entram na cadeia. Então a gente vê esta pessoa aí dessa forma no telhado, atrás, de alguma coisa que alguém permitiu a entrada, a gente não pode deixar de observar isso, é extremamente importante, o agente fica no trabalho de um lado tentando retirar as coisas enquanto outros estão permitindo a entrada. E tornando o sistema penitenciário desta forma aí com imagens, aí, absurdas, olha lá o tanto de coisas recolhidas dentro da... dentro da, daquele cesto. Os presos submetidos a este tipo de operação, os policiais tendo que gastar energia para fazer essa busca, tudo poderia ser evitado se o trabalho fosse sério...”.
Concordo com a frase final do nobre jornalista quando ele diz que tudo poderia ser evitado se o trabalho fosse sério. Este texto é um claro exemplo disso.
Uma boa imprensa baseada na checagem das informações, na contextualização dos acontecimentos e na garantia do direito ao contraditório pode evitar leviandades, principalmente quando o assunto é o ambiente prisional.
Afinal, o sistema prisional é um ambiente muito complexo, não se resume ao preto no branco. São diversos núcleos, setores com inúmeros profissionais envolvidos, alguns a serviço do Estado, outros não. São professores, advogados, religiosos, prestadores de serviços, funcionários de diferentes áreas, visitantes, em um entre e sai de profissionais interminável, tudo para promover o que determina a Lei de Execução Penal, ou seja, a ressocialização do indivíduo preso.
Assim, antes de acusar ou até mesmo discorrer sobre o ambiente prisional, é de suma importância que exista nas palavras do jornalista um mínimo de conhecimento sobre as características deste sistema, com compreensão dos pormenores e a rotina do cotidiano dentro das unidades.
E isso se torna ainda mais imperativo em tempos de redes sociais, quando as notícias chegam mais rapidamente aos interessados, fazendo com que, de repente, e através de um simples clique, toda uma reputação possa ser jogada água abaixo, criando estigmas, e depreciando, neste caso, toda uma categoria.
É muito fácil, sem qualquer conhecimento, ir à frente das câmeras e dizer que “se entrou algo irregular nas unidades prisionais, foi por que alguém deixou”. Note-se que o verbo “deixar”, nesse contexto em que foi utilizado, é muito ofensivo. Afinal, se observarmos alguns de seus sinônimos, deixar é o mesmo que, permitir, autorizar, consentir, admitir, aceitar, assentir, conceder, concordar, aprovar, outorgar, aquiescer, liberar, anuir, acordar, em se tratando de ambiente prisional, parece que foi algo permitido por alguém que deixou de fazer o seu serviço ou se o fez, o fez mal feito ou em conluio com outros. Sem provas, esta acaba por se tornar uma afirmação muito séria e que requer provas.
Por isso agora, vou mostrar ao senhor jornalista e para quem quiser saber algumas características do sistema prisional às quais os leigos no assunto, por opção ou não, insistem em ignorar.
Como citei anteriormente, o sistema prisional não se resume apenas em policiais penais e sentenciados. É um ambiente amplo que recebe diariamente muitos profissionais e inclusive visitantes (principalmente aos finais de semana).
Para se ter uma ideia, nos últimos anos, foram publicadas pelo site do Sindicato dos Funcionários do Sistema Prisional do Estado de São Paulo (SIFUSPESP), mais de 420 matérias sobre apreensões, em sua maioria junto aos visitantes dos sentenciados, quase nove por mês em média.
Nessas apreensões, são encontradas substâncias entorpecentes, chips de celular, celulares e micro celulares, escondidos em barbeadores, creme dental, livros, cigarros, doces, roupas, óculos, calçados, sabonetes, carne, bolos, salgadinhos, bíblias, dentre outros gêneros alimentícios e materiais de higiene e de uso diário, e até mesmo introduzidos no próprio corpo e nas roupas dos visitantes.
Porém, mesmo assim, a Lei 15.552 de 12 de agosto de 2014 proíbe a revista íntima dos visitantes nos estabelecimentos penais e estas são só submetidas a revistas mecânicas, feitas por scanners corporais, que por sua vez são operados pelos policiais penais.
Se não bastasse os casos já citados, existem outras maneiras de se introduzir estes objetos nas unidades prisionais e que, inclusive, já foram surpreendidos pelos policiais penais. Do lado de fora, os criminosos utilizam animais como gatos, ratos e pombos para que sejam recolhidos pelos presos com o material ilícito. Dependendo do modelo de unidade prisional, as drogas e celulares são arremessados por suspeitos que estão próximos às penitenciárias Outros enviam os ilícitos por meio de drones.
Assim fica evidente que quando o assunto é introduzir objetos e substâncias não autorizadas no interior das unidades prisionais, a imaginação e a prática dos autores dos delitos não têm limites.
Outro fator que se deve destacar é que muitos dos objetos apreendidos nos interiores das unidades prisionais são objetos autorizados e de uso necessário por estes, e que os sentenciados adaptam para o seu uso, seja este qual for. São canetas, isqueiros, embalagens plásticas e até mesmo frutas. Por exemplo:
Com uma caneta e um isqueiro, o sentenciado pode criar um objeto pontiagudo, utilizando o tubo da caneta e o ferro da mola do isqueiro. Além de uma arma contundente, eles podem criar com estes materiais uma máquina de tatuagem artesanal, utilizando-se da tinta da caneta ou de um barbeador derretido para desenhar. Já com um tubo de caneta e uma lâmina de barbeador, é possível fazer um pequeno objeto cortante. Note-se que são objetos que são devidamente autorizados pela SAP e de uso comum dos presos.
Por outro lado, com fios da instalação elétrica da própria unidade, pedaços de ferro retirados das paredes e embalagens plásticas de leite pode ser confeccionada uma resistência (perereca) para esquentar alimentos, fazer bebida alcoólica e inclusive esquentar água para jogar em inimigos e funcionários. Este tipo de prática pode causar pane elétrica em toda a unidade.
Aliás cumpre-me ressaltar que a bebida alcóolica é confeccionada com frutas. Agora, com embalagens de leite e restos de marmitex, no caso dos CDPs, os sentenciados podem criar escadas, cordas e outros materiais que serviriam para ajudá-los em fugas, para amarrar rivais ou servidores e em certas situações. Esses são só alguns pequenos exemplos da complexidade do ambiente prisional, onde coisas e objetos vistos como banais por pessoas de fora do ambiente são transformados nos mais variados modelos de armas e equipamentos voltados a atentar contra a disciplina e a ordem do sistema.
Assim, é importante salientar que, quando o nobre jornalista diz: olha lá o tanto de coisas recolhidas dentro da... dentro da, daquele cesto. Nem tudo aquilo entrou na unidade de forma ilícita. Muita coisa é improvisada, adaptada pelos próprios sentenciados com materiais devidamente autorizados, muitos de suma importância para o dia a dia deles. Por isso, passar informações sem o devido conhecimento chega ao limite da irresponsabilidade.
Por outro lado, devemos nos ater também às condições de trabalho destes profissionais, fator também ignorado no comentário jornalístico.
Atualmente, o sistema prisional do Estado de São Paulo possui 207.987 sentenciados divididos em 179 unidades prisionais, com 23.404 Policiais Penais na ativa responsáveis por sua custódia. Existem, portanto, em média 8,8 presos para cada sentenciado no Estado. Isso sem contar com servidores afastados por estarem de férias, licença-prêmio, licença-médica ou desviados de função. Os dados são da SAP.
Segundo a Organização das Nações Unidas(ONU) e o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária(CNPCP), vinculado ao Departamento Penitenciário Nacional(DEPEN) e ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, a proporção ideal para garantir a segurança e o bom funcionamento das unidades prisionais é que cada servidor tenha sob sua custódia 5 presos. A diferença existente nos números demonstra claramente as péssimas condições de trabalho destes profissionais no Estado.
Se contarmos com os servidores desviados de função, os que diariamente saem para escolta externa e os que estão por algum motivo de licença médica, podemos alcançar uma proporção de até 10 por 1, o que prejudica totalmente os trabalhos realizados no dia a dia. No entanto, mesmo assim, todos os dias são apreendidos objetos e substâncias ilícitas nas unidades prisionais, a maioria, antes da entrada dos mesmos nas celas.
Isso seria de conhecimento público se o nobre jornalista ao menos pesquisasse o básico a respeito do sistema prisional. Muitas destas informações estão publicados nos sites da SAP, do SIFUSPESP, e de outros sites de notícias, inclusive no portal G1, da Rede Globo onde ele atua, espalhado por inúmeras regiões do Estado.
A partir das informações trazidas por diferentes estabelecimentos penais onde as apreensões são feitas por policiais que trabalham incansavelmente para garantir a segurança das unidades e da população, repórteres e redatores que estão vinculados à mesma empresa que Rodrigo Bocardi não titubeiam em dar publicidade a essas informações.
Muitas vezes, a apuração jornalística e a veiculação destas notícias pode não parecer tão nobre quanto a verborragia disponível à vontade para um âncora de um programa que alcança milhões de paulistas todos os dias. Não tão dotada de audiência, não tão bela de se ler ou ouvir, mas certamente ética e com respeito à verdade dos fatos.
Por isso, senhor jornalista digo ao senhor que aquilo que se viu não se tratava de fogo amigo, não, mas de profissionais que mesmo com as condições de trabalho claramente adversas combatem o crime organizado da melhor maneira possível, se dedicando, não se importando com o déficit funcional, tampouco, com a superpopulação carcerária imposta no estado.
O que se vê ali, são senhores de família trabalhando, exercendo suas atribuições com zelo e presteza, mesmo que pessoas que sequer conhecem o ambiente de trabalho deles, mesmo que pessoas que sequer conhecem as entranhas do sistema prisional os critiquem, colocando neles uma culpa que nunca tiveram, depreciando toda uma categoria, devido a ignorância em que se vive. Pessoas que mostram ao crime organizado que eles podem ter mil maneiras de introduzir ilícitos e criar armas dentro das unidades prisionais que elas terão mil e uma maneiras de evitar e apreender estes ilícitos para que não sejam utilizados. Aquela pessoa ali no telhado, caro jornalista, é uma dessas pessoas.
Já que o senhor, como disse, tinha que observar certos detalhes, por que não observou e ressaltou a quantidade de sentenciados que naquele momento estavam recolhidos naquela unidade prisional e quantos funcionários estavam lá trabalhando diuturnamente para manter aquilo em pé?
Por que não procurou saber as reais condições do sistema prisional e quais os métodos utilizados pelos sentenciados para conseguir adentrar nas unidades com seus ilícitos?
Muitas vezes, senhor jornalista, isto está à distância de um clique.
Mas a pergunta que fica é: Isso gera audiência?
É senhor jornalista, como o senhor disse: Se é num lugar sério, se é num lugar sério não existe este tipo de operação…
Concordo com o senhor “se é um lugar sério” teríamos leis para punir e coibir estas situações. “Se é um lugar sério”, os Policiais Penais não trabalhariam em condições totalmente agressivas a sua saúde, como a superpopulação carcerária. Se “é um lugar sério”, não teríamos quase dez presos para cada servidor.
Se “é um lugar sério” teriam buscado informações sobre o sistema para não ser leviano nas afirmações.
Se tudo fosse levado a sério, caro senhor, com certeza, este texto não teria razão alguma para existir.
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