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Por Flaviana Serafim

“Anseio que o Estado invista na formação e qualificação do servidor penitenciário, em especial, por considerá-lo como o elo necessário à efetivação da política e das assistências penitenciárias aos homens e mulheres privados de liberdade no Brasil. O meu respeito a todos!”. A afirmação está na dedicatória à categoria escrito livro Prisão, Educação e Remição de Pena no Brasil: A Institucionalização da Política Para a Educação de Pessoas Privadas de Liberdade, resultado da tese de doutorado da socióloga Eli Narciso da Silva Torres, sobre remição de pena por meio da educação no Brasil. A obra é acessível gratuitamente por aplicativos de leitura.

Em sua tese, a socióloga problematizou as possibilidades de remição de pena por meio da educação, como prevê a Lei de Execução Penal (LEP), e seu trabalho de doutorado se tornou referência internacional por inovar ao retratar histórias, acontecimentos e os atores envolvidos de uma forma que nenhum outro pesquisador da área da justiça e execução penal havia tratado: com o olhar a partir de sua perspectiva e experiência por dentro do sistema penitenciário. 

Hoje servidora do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). Eli Torres tem em sua trajetória profissional cerca de oito anos como policial penal no sistema prisional de Mato Grosso do Sul, com a dura rotina insalubre do trabalho conciliada aos estudos acadêmicos e à docência - dedicação que hoje faz com que a socióloga tenha seus estudos citados, inclusive, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco)  - Books beyond bars: The transformative potential of prison libraries, de 2019, e a recém publicada Education in prison - A literature review, de julho último.

Em entrevista ao site do SIFUSPESP, ela comenta seu estudo e ressalta o papel dos servidores penitenciários no processo que pode transformar a vida dos sentenciados a partir da educação. “É nessa perspectiva que trato a educação a remição no Brasil. O preso vai à escola para remir a pena, mas ele pode ser capturado pela educação a qualquer momento. Temos que acreditar que a grande possibilidade é o acesso educacional”.

Eli Narciso Torres também é pesquisadora do FOCUS (Grupo de Pesquisa sobre Educação, Instituições e Desigualdade) na FE/UNICAMP, e do Laboratório de Gestão de Políticas Penais da Universidade de Brasília (LabGEPEN/UnB). Conheça os conteúdos produzidos pela socióloga disponíveis para acesso no Google Acadêmico.

A socióloga Eli Torres
A socióloga Eli Torres 

Fui alertada por uma pessoa presa “que o indivíduo privado de liberdade, assim como qualquer sujeito, vive de expectativas”. Então, a educação traz novas expectativas e isso não é diferente no sistema penitenciário. Primeiro que a educação é um direito assegurado à pessoa presa que pode pensar novas possibilidades pela educação. O indivíduo pode mudar os rumos, sua trajetória, pode mudar sua compreensão sobre a forma de ver o mundo se for capturada pelo estudo. O que nos resta é a esperança na educação, mecanismo que é capaz de trazer transformações mesmo num ambiente tão precário chamado prisão. 

Qual o papel dos servidores penitenciários em meio às complexidades para que as pessoas presas tenham direito de acesso à educação?

O agente penitenciário é o elo necessário à efetivação da política. Esse trabalhador e, em especial, o Estado precisa compreender a função social da profissão. Veja que o sistema de justiça criminal nos reservou a execução da custódia e a aplicação da política penal como atribuições necessárias à efetivação das disposições da sentença, além de proporcionar as condições para a harmônica integração social do condenado.

Ou seja, a função é muito relevante. Se você não se colocar num lugar em que faça a diferença para sua profissão, como você vai viver com satisfação? Em que medida seu trabalho é importante? É importante conscientização e, principalmente, não desacreditar.

Dedico o livro “Prisão, Educação e Remição de Pena no Brasil...” aos servidores e os vejo como em luta constante por uma constituição de identidade. Quando estudava em São Paulo era muito comum me perguntarem “o que você faz no sistema penitenciário?”. Respondia “que abria o portão da cadeia” e as pessoas ficavam muito chocadas e tacitamente diziam: “como assim você que está transitando nesse espaço e abre o portão da cadeia?”. Em alguns casos, eu falava intencionalmente porque existe uma marginalização da função do servidor penitenciário, por isso, sentia que era importante a desconstrução do senso comum que coloca o trabalhador na condição de corrupto, burro e torturador.  Imagem do carcereiro do séc. XVI da qual, tardiamente, o agente prisional, ainda não conseguiu desvincular-se.

A função e a imagem do servidor penitenciário ainda são associadas, em alguma medida, a uma ocupação desprestigiada, porque os salários em nossa sociedade auxiliam e estabelecem parâmetros sociais sobre o que é ou não uma profissão de prestígio. Tudo isso impacta negativamente e retarda a construção da identidade da categoria profissional.

A todo tempo, ser Agente foi muito importante e significativo na minha trajetória. Primeiro porque abriu as portas das prisões para minha pesquisa e pude ter o melhor acesso; e, principalmente porque é uma profissão necessária, então, não posso em momento nenhum, especialmente quando conciliei com outros trabalhos, nas universidades ou como pesquisadora, negar a minha trajetória.

Foi esse trabalho duro e as coisas muito difíceis que vivenciei que me fizeram mais forte, faz parte das minhas vivências, vale lembrar que é muito importante e digno abrir o portão do presídio. O sistema penitenciário é extremamente complexo, mas acho que também nos fortalece. E não perder a capacidade de se indignar, de acreditar no ser humano, acho isso extremamente importante e afirmo que não perdi, mesmo nos momentos mais difíceis, a esperança de ser agente transformador na execução penal brasileira.

Qual foi seu ponto de partida para a pesquisa?

A pesquisa examina a gênese do dispositivo jurídico da remição de pena pelo estudo e a luta pela garantia de direitos à educação nas prisões. Processos gestados, imersos à constituição de uma “questão carcerária”, demarcada por superencarceramentos, motins, organização de facções criminosas e constantes rebeliões no sistema penitenciário. A obra demonstra como os conflitos penitenciários, gradualmente, influenciaram para a formação do espaço de militância que se ocupou em combater violações aos direitos civis e para, inclusive, mobilizar intelectuais e militantes engajados, dispostos em institucionalizar políticas educacionais para pessoas privadas de liberdade no Brasil.

Há uma questão penitenciária decorrente do evento do Carandiru, em 1992, que trouxe visibilidade ao tema na época, quando o sistema prisional aprisionava, em média, 90 mil presos no Brasil em condições desumanas de encarceramento e sem tratamento penal adequado. Em 1993, ocorreu o surgimento da facção criminosa PCC, no Estado de São Paulo, e as sucessivas rebeliões, principalmente as de 2001, depois a maior, de 2006, conhecida como o “dia do Salve” ou “dia das mães”. 

Nesse contexto, até então, o Brasil tinha um histórico de militâncias por direitos de presos políticos, e com esses eventos, massacres e com o advento das rebeliões, acende um sinal de que havia uma questão carcerária que se tornou o problema carcerário no país. Com isso, pessoas militantes de direitos humanos passaram a militar pelas causas de presos comuns e gradualmente apontavam para a educação como uma forma de reintegrar os presos à sociedade, na perspectiva da integração social da pessoa presa no período posterior à prisão.

Como socióloga, parto da visão de que se pode ressocializar alguém que nunca esteve de verdade integrado na sociedade envolvente; que nunca de fato foi socializado; que nunca teve acesso às instituições sociais.

Então, compreendo como integração social. Esses militantes intelectuais, políticos e sociedade civil queriam integrar os detentos pela educação, entre outras formas de integração e passaram a militar tanto pelo direito ao acesso à educação. Vale destacar que a educação é uma das políticas penais mais organizadas do ponto de vista legislativo, como eles também passaram a militar para que fosse possível a remição da pena pela educação, em analogia à remição de pena pelo trabalho na prisão, prevista na LEP desde 1984.

Como você avalia as condições de acesso à educação nas prisões?

Hoje a educação nas prisões está institucionalizada no Brasil, há uma média de 12% de pessoas presas estudando em educação formal e não formal, um percentual ainda muito pequeno. Do ponto de vista legislativo avançamos, mas do ponto de vista da efetividade da política temos um grande desafio pela frente. É nessa perspectiva que trato a educação no Brasil que se desdobra na possibilidade de remição.

Em regra, o preso vai à escola com a intenção de remir a pena e reduzir parte do tempo de prisão, mas, o que a sociedade deve compreender é que o indivíduo pode ser capturado pela educação a qualquer momento. Temos muitos relatos no Brasil de presos que estudaram ensino médio pela Educação de Jovens e Adultos, a EJA, e ingressaram em universidades. O estímulo inicial foi a possibilidade da remição penal e no ínterim foi capturado.  Veja a grande transformação social possível pela via das políticas penais, entre elas, a garantia do acesso educacional.

De que forma você lidou com o desafio de conciliar o trabalho, a vida acadêmica e as responsabilidades que acabam recaindo sobre as mulheres?

Penso que a mulher tem a capacidade de lidar com a dupla jornada de trabalho e todo esse acúmulo com mais leveza. Mas, do ponto de vista racional, também não sei dizer exatamente como fiz para conciliar o trabalho na prisão, o doutorado, a família e outras ações que desenvolvia.  Sempre fui focada nos objetivos e resultados, assim as dores são mais suportáveis, em especial, porque acredito que na caminhada, o importante é o conseguir chegar. Então, não olhava muito para a dificuldade, olhava para os meus objetivos. Queria muito buscar outras possibilidades em concurso público, cursar um pós-doutorado na Europa. Então por isso, o foco era na minha meta, não podia e não posso fraquejar porque a vida é extremamente dura.

Acho que alguma coisa valeu a pena e tenho a sensação de que colaborei "em alguma medida" com o campo educativo e o da execução penal no Brasil.

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