Por Arlindo da Silva Lourenço
Retorno a este canal de informação após uma lacuna de pouco mais de três meses, justamente na semana em que o Brasil alcançou a marca infame de 4.000 mortos/as em 24 horas em decorrência de complicações relacionadas à COVID-19.
Neste momento, o país, que há não muitos anos parecia alçar voos importantes rumo ao reconhecimento como grande nação em franco desenvolvimento no planeta, recebe o título de “cemitério do mundo”, ou seja, o Estado nacional onde mais se morre vitimado pelo novo coronavírus que, se tem trazido infelicidade, angústia e desgaste para a população ao redor do globo, foi aqui que pôde se esmerar na reprodução de novas cepas, graças ao descaso e ao negacionismo das instâncias de governo desde o Planalto, passando pelos estados e chegando aos mais de 5.500 municípios deste vasto território.
Neste momento, somente o Brasil é responsável por quase a metade do número total de mortes no planeta, em razão da doença. O falso debate a que temos assistido, desde as primeiras informações sobre contaminação por COVID-19 em terras tupiniquins, em março de 2020, é sobre os problemas para o país como um todo e para a população em geral, que um fechamento total (lockdown) poderia trazer; justamente um debate sobre a única medida reconhecidamente eficaz, segundo as instâncias sanitárias mundiais, capaz de controlar a contaminação do vírus altamente contagiante, evitando, dessa forma, que o sistema de saúde entre em colapso com a intensa necessidade de internação e de cuidados intensivos aos/às contaminados/as.
Se a Europa, em especial, alguns países que, desde o início desta pandemia, se esmeraram em fechar suas fronteiras e a fiscalizar o fluxo populacional em suas terras, ainda têm sofrido com contaminações frequentes e número de mortes remanescentes causadas pelo novo coronavírus acima de qualquer razoabilidade, ali já é possível prever um retorno a passos lentos à normalidade anterior, após o segundo semestre deste ano.
Não é este o nosso caso, infelizmente. Previsões nada otimistas, mas pressionadas por um “movimento de boiada”, onde a tônica é aquela de sempre no país da carochinha - “não vai acontecer comigo”; “enquanto não acontecer com a minha família, tudo bem”; “o vírus não é nada além de um resfriado”; “é tudo intriga da oposição”; “fazer o quê, é preciso trabalhar”; “a vacina chegou, daqui a pouco todos estaremos bem” - indicam que teremos os meses de março e de abril mais tristes de nossa história recente.
Indicadores confiáveis dizem que podemos atingir a marca de 5.000 mortes em 24 horas ainda este mês de abril de 2021 que, ao final, marcará, de forma triste e deprimente, ao menos mais 100.000 mortes. As mortes que poderiam ser evitadas e essas outras que AINDA podem ser evitadas motivaram-me a escrever estas linhas.
Ontem mesmo, juntamente com outros/as colegas, participava de um debate sobre a saúde das trabalhadoras e dos trabalhadores em presídios e na segurança pública, em evento da Semana de Psicologia da USP. As pessoas que fizeram do sistema penitenciário a sua fonte de renda e de sustento pessoal e familiar e que, infelizmente, morreram em razão da COVID-19 foram lembradas, bem como foram lembradas todas as outras que, também infelizmente, habitavam o cárcere condenadas pela justiça a penas privativas de liberdade e também sucumbiram.
Do cárcere brasileiro muito já se sabe, o que inclui a categoria de local inóspito, insalubre, perigoso, incapaz de atender as condições mínimas de dignidade humana, talvez o último dos bastiões das políticas públicas, esquecido e aviltado propositadamente pelo Estado desumanizado e desumanizador.
Ali, as pessoas que habitam ou que trabalham (alguns, ainda, habitam e trabalham) estão há mais de um ano, como malabaristas que tentam se equilibrar. Diferentemente do equilibrista que tenta não cair, as personagens no interior das prisões, tentam não morrer. Embora pudesse ser evitado, houvesse políticas públicas genuínas e honestas, algumas não conseguem e sucumbem.
A estas e aos entes queridos que deixaram, nossos sentimentos mais profundos de pesar e nossa solidariedade neste momento de tão profunda dor, solidão e revolta.
Arlindo da Silva Lourenço é doutor em Psicologia e autor do livro “O Espaço de Vida do Agente de Segurança Penitenciária no Cárcere”