Por Eli Narciso Torres
O servidor penitenciário trabalha naquela função que assusta inicialmente pelo perigo, causando asco em alguns, que viram imediatamente o nariz, pela proximidade com o submundo chamado prisão.
Uma construção social do operador penal, alimentada, às vezes, pelos resquícios de práticas, cada vez mais isoladas, porém medievais e inaceitáveis em sistemas democráticos ou pela imagem do carcereiro do século XVI da qual, tardiamente, o policial penal ainda não conseguiu descolar-se.
Construção mediada, especialmente pelos baixos salários. Cá pra nós: a obtenção de capital econômico auxilia e estabelece parâmetros sociais sobre o que é ou não uma profissão de prestígio!
Pode-se dizer que o policial penal, assim como o preso, faz parte de uma categoria que vê e não é vista, ou melhor, é vítima de invisibilidade social. Isso também encontra simbiose com o estigma que permeia o imaginário coletivo, fortalecido pela ausência de informações sobre como se efetiva o trabalho e quais são as atribuições do policial penal em ambientes penitenciários.
Mas eles continuam lá… Não podem parar! A prisão é um mundo desleal, perigoso e, literalmente, enlouquecedor. Vejam os relatos expostos no livro ou na série Carcereiros -, com a descrição ou inspirações “da realidade literária” de Dráuzio Varela.
Quando atuei como servidora do sistema penitenciário estadual costumava dizer: “Ah, se escrevêssemos, também um livro com os relatos nada literários que só os encarcerados [agentes e presos] sofrem e sabem!” Acontecimentos diários que adoecem e vitimizam seres humanos, quase sempre proporcionados pela precariedade e omissão do Estado Penal brasileiro!
Por outro lado, é preciso refletir sobre os códigos discursivos, socialmente aceitos e predominantes no campo penitenciário, sobretudo, os que reivindicam “melhorias”, “ressocialização”, “humanização” de pessoas e do sistema penitenciário.
Como assim?
– Melhorias nas prisões são apenas paliativas, faço analogia à correção de uma vírgula num livro repleto de erros e sem revisão ortográfica;
– Reiteram o discurso político na direção humanizar aqueles que nunca deixaram a singularidade do nascimento e da vida humana;
Por fim, o equivoco semântico do emprego do conceito “ressocialização”, como se fosse possível, simplesmente, reprogramar as pessoas privadas de liberdade, inclusive, desconsiderando que a maioria dos indivíduos presos pertence aos extratos mais pobres da sociedade, alocados na base da pirâmide social e, assim, não passaram por um processo de socialização mais amplo.
Trata-se de um grupo formado por mais de 726 (mil presos), que no período anterior a prisão, não acessou as demais instituições sociais, e não obteve a mesma acolhida oferecida pelo sistema de justiça criminal para, por exemplo, permanecer na escola ou ingressar nas universidades, e também porque o grupo em questão não estava economicamente integrado às demandas da sociedade do consumo.
Por isso, a gestão do sistema penitenciário poderá com investimentos nas assistências (educacionais, sociais e laborais, dentre outras), e compreendendo o agente como o elo facilitador para a efetivação da política, nesta engrenagem, integrar sim, socialmente o condenado como prevê a Lei de Execução Penal.
Temos que nos preocupar em que condições estas pessoas estão aprisionadas. As ações e políticas penitenciárias devem partir do pressuposto que as prisões estão funcionando como fábricas de delinquência. Principalmente, porque o Estado produz e fomenta a reincidência penal, ao desrespeitar, em especial, as previsões da LEP que estabelecem disposições jurídicas para a custódia de presos no país.
A ausência de arranjos e compromissos institucionais, do ponto de vista da gestão pública, com a questão penitenciária estão estreitamente associados a ampliação do crime organizado, rebeliões nas prisões, reincidência e superencarceramento no país. Com isso, desconsideram que os mesmos indivíduos retornarão brevemente à sociedade, mais violentos e, por isso, o Estado não pode tratá-los com destroços empilhados de qualquer modo em depósitos penitenciários.
Mas quem se importa? Bandido bom é bandido morto, não é máxima do senso comum?
Em síntese, enquanto os representantes do executivo e legislativo reproduzem o discurso recorrente que a prisão tem função ressocializadora ou insistirem que a fábrica funcionará muitíssimo bem se investirem em melhorias, reparos e puxadinhos. Tacitamente também dizem: beijinho no ombro para você aí no corredor! Para você que carrega as chaves! Para você que negocia com o crime organizado todos os dias para trancar uma ala ou, simplesmente para sobreviver!
Disse em outro lugar, que reconheço o agente como um sobrevivente nesta desproporcional “labuta diária”. Soldados num fronte de guerra, sem barricadas. Convivi com essa gente nobre [a maior parcela] e pouco valorizada que trabalha nas prisões. Tantos saberes e oralidades, compartilhadas durante as madrugadas frias, nos corredores da prisão que fundamentariam um belo roteiro de longa-metragem.
Anônimos, cobaias do Estado que arriscam diariamente suas vidas, como se fosse possível reconstituí-las feito nos filmes de super-heróis. Plantões com sete, oito servidores para conduzirem penitenciárias abarrotadas de seres humanos. Homens e mulheres que gerenciam diariamente o caos com maestria e, ainda conseguem rir e ironizar sobre a própria sorte.
Como disse o poeta James Russel, “Só os tolos e os mortos jamais mudam de opinião”.
Eli Narciso Torres é Socióloga, especialista em Direitos Humanos e Execução Penal e Doutora em Educação pela Unicamp.