Psicólogo com mais de duas décadas de experiência dentro do sistema prisional atesta que danos provocados por expectativa social sobre o trabalho de custódia e vigilância, jornadas extenuantes e convivência em ambiente fechado e superlotado estão ligados a adoecimento psíquico, depressão e suicídio. Em entrevista exclusiva ao SIFUSPESP, especialista também fala sobre como está e o que será da saúde mental do trabalhador em decorrência da pandemia do coronavírus
por Veridiana Dirienzo e Giovanni Giocondo
Pressão de todas as naturezas sobre seu trabalho, feito em local insalubre, superlotado e onde a sociedade exige que o controle e a vigilância permanente sobre a vida de pessoas presas sejam feitos com excelência e sem margem para erros. Estes são alguns dos elementos que compõem a realidade precária daqueles que atuam no sistema penitenciário. Seres humanos cada vez mais adoecidos mentalmente, que dificilmente têm encontrado reverberação de seu sofrimento para além dos muros das prisões.
Esse é um dos diagnósticos elaborados pelo psicólogo Arlindo da Silva Lourenço a respeito de danos irreparáveis causados pela superexploração do Estado sobre uma mão de obra de servidores cada vez menos valorizada, solitária e que se desdobra tanto para atender aos anseios dos cidadãos como para demonstrar uma força de superação que, se fisicamente já rareia, na cabeça desce a patamares inimagináveis. “Frente a tanto mal estar e desgaste em razão dessas condições, podemos falar em calamidade do trabalho penitenciário”, alerta
Autor da tese O Espaço de Vida do Agente de Segurança Penitenciária: entre gaiolas, ratoeiras e aquários, de 2010, Arlindo Lourenço considera que apesar de tanta dificuldade no ambiente prisional, o trabalhador evita procurar ajuda, o que acaba por se tornar um terreno fértil para a “cronificação dos sintomas”, o avanço da tristeza, da depressão e a ocorrência do suicídio e de outros eventos catastróficos envolvendo o indivíduo.
Nesta entrevista exclusiva para o SIFUSPESP, o psicólogo que durante 25 anos atuou na Penitenciária José Parada Neto, em Guarulhos, recupera alguns de seus estudos para avaliar o atual momento da saúde mental do trabalhador penitenciário e até mesmo para tentar imaginar as consequências que a pandemia do coronavírus - tanto enquanto dura quanto após seu final - terá sobre a continuidade da vida dos servidores.
Para além das campanhas de prevenção ao suicídio que se estendem ao longo do mês de setembro, o SIFUSPESP acredita que a saúde mental do servidor penitenciário precisa estar em pauta todos os dias, e por esse motivo procurou o especialista para tratar deste e de outros temas por vezes considerados “tabus”, que tanto urgem serem debatidos entre os que trabalham no sistema.
Confira a seguir a entrevista completa:
Quem é Arlindo Lourenço?
Meu nome é Arlindo da Silva Lourenço, sou Psicólogo de formação com doutorado em Psicologia Social, defendendo a Tese intitulada: “O Espaço de Vida do Agente de Segurança Penitenciária: entre gaiolas, ratoeiras e aquários”, em 2010. Ingressei no sistema penitenciário de São Paulo ainda em 1991, atuando na Penitenciária José Parada Neto, de Guarulhos, onde permaneci até meados de 2015.
Nesse período, tive passagens pela Escola de Administração Penitenciária de São Paulo, tanto desenvolvendo a função de docência em cursos de formação e aperfeiçoamento, incluindo para dirigentes prisionais, quanto também estive à frente do Núcleo de Acompanhamento e Integração Psicossociológica, precursor do Departamento de Saúde do Servidor Penitenciário; também lecionei para o DEPEN, órgão do Ministério da Justiça; estive como Conselheiro Penitenciário por dois mandatos, de 2008 à 2015 e contribui com o setor de Recursos Humanos da SAP, como avaliador, em bancas de concursos públicos para Agentes de Segurança Penitenciária. Encerrei a minha carreira como Psicólogo no serviço público estadual no Centro de Progressão Penitenciária Feminino “Doutora Marina Marigo”, do Butantan, no final de 2015.
SIFUSPESP - Dentro do sistema penitenciário, os servidores das áreas de segurança, vigilância, saúde, assistência social, administrativos e operacionais são submetidos a variadas pressões, de diferentes intensidades, que podem causar impactos profundos em sua psique trazendo problemas de saúde mental. Você poderia especificar o que é, em sua opinião, a principal origem (ou principais origens ) dessas pressões nas atividades que trabalhadoras e trabalhadores do cárcere desenvolvem no dia-a-dia e como elas se vinculam ao mal estar físico e psíquico e ao sofrimento desses trabalhadores?
Arlindo Lourenço - Não é de hoje que se considera o trabalho no interior das prisões como um dos mais insalubres dentre o rol de profissões pelo planeta. A Organização Internacional do Trabalho já afirmou em alguns de seus escritos que a profissão de Agente de Segurança Penitenciária (com suas denominações similares) é uma das mais perigosas do mundo e uma das poucas onde insalubridade e periculosidade incidem simultaneamente.
As pressões são imensas: desde a expectativa social de que esse/a trabalhador/a controle, vigie e, ao mesmo tempo, ressocialize o sujeito que cometeu crimes, passando por condições indecentes de trabalho nos cárceres extremamente precarizados pelos governos locais: problemas com luminosidade precária, jornada inteira longe do sol em ambientes frios e úmidos, insuficiência no quadro de recursos humanos fazendo com que um/a trabalhador/a apenas seja responsável pela tranca de 300, 400, 500 pessoas ou acumule funções em seu turno exaustivo de trabalho (geralmente 12 ou 24 horas seguidas a depender do Estado da federação); condições de saúde das pessoas presas também bastante precarizada – ambientes superlotados, de pouquíssima ou nenhuma ventilação, ausência de profissionais de saúde suficientes para o atendimento das questões míninas, dentre outras questões.
A recompensa pelo trabalho (salário) vem sendo continuamente afetada, com cortes imprevistos e descontos que se acumulam cada vez que se propõe reformas administrativas. Enfim, podemos falar em calamidade no trabalho prisional.
Os problemas para a psique decorrentes de trabalho nessas condições desgastantes vão desde o estresse clássico (a fadiga crônica e o consequente absenteísmo), passando por problemas com ansiedade, depressão, fobias de todas as ordens, uso abusivo de substâncias que proporcionem alguma satisfação frente ao caos existencial, chegando às psicoses orgânicas e, em alguns casos, a falência do organismo, com a morte da pessoa, aqui incluido o suicídio.
SIFUSPESP - De que forma as doenças crônicas e não transmissíveis, ortopédicas (posturais) e de outras ordens, adquiridas em decorrência do trabalho penoso e insalubre dentro do sistema penitenciário podem tornar mais problemáticos o sofrimento mental, potencializando os transtornos mentais que podem dificultar ou memos impedir que a/o trabalhador/a continue a desempenhar suas atividades profissionais “normalmente”?
Arlindo Lourenço - Creio que faltam pesquisas nesse campo relacional, ou seja, das doenças crônicas não transmissíveis e outras, ortopédicas, dentre as pessoas que trabalham no cárcere. Entretanto, sabe-se, por exemplo, que uma das consequências do trabalho no cárcere, para uma quantidade que ainda não se conseguiu medir de trabalhadores/as é, justamente, a obesidade ou o sobrepeso, com todas as decorrências na ordem das complicações, desajustes e problemas orgânicos daí advindos, como hipertensão, diabetes, problemas coronarianos, renais, estomacais, gastrointestinais e circulatórios (é um trabalho que exige ou uma permanência por longo tempo na posição ereta (em pé) ou, em alguns casos, sentado também por longo período de tempo.
SIFUSPESP - Como as dificuldades de relacionamento interpessoal, os conflitos familiares, a solidão, a dificuldade em conciliar a receita obtida do trabalho (salário) e as despesas do mês e a desilusão com o modelo de organização do próprio trabalho afetam a saúde e a própria vida do/a servidor/a penitenciário e fazem com que eles/as desenvolvam casos de ansiedade, síndromes de variados tipos e até mesmo a depressão?
Arlindo Lourenço - Essas situações foram disparadoras, para mim, da necessidade de estudos com essa população de trabalhadores/as no cárcere. Percebia, desde pouco tempo depois que ingressei como Psicólogo na Penitenciária de Guarulhos, em 2011, a partir de relatos dos colegas que ali trabalhavam, das dificuldades grandes que enfrentavam em suas vidas cotidianas e que, para mim, teriam alguma relação com o tipo de trabalho que executavam.
Não era incomum, conforme os anos se passavam e as relações se estreitavam, que eu soubesse de um colega que se afastava do trabalho para tratamento de saúde mental, às vezes, por longo tempo. Também acabou sendo comum, infelizmente, receber notícias de falecimentos de colegas, conhecidos ou mesmo alguém não tão conhecido meu, mas trabalhador como eu naquele estabelecimento.
As causas do óbito eram variadas, indo da falência do corpo em razão de uma doença severa, passando por acidentes automobilísticos ou com armas de fogo, chegando aos homicídios e suicídios.
Certa vez, depois de quase 20 anos de trabalho no interior do cárcere, contamos, eu e uma colega Assistente Social, quantos colegas e conhecidos sabíamos que havia falecido desde que ali chegamos: naquele momento contamos mais de 50 deles/as, um número grande, imagino, para qualquer setor ou campo de trabalho! Nenhum/a desses/as trabalhadores/as morreram em condições de algum evento violento no interior do cárcere, como uma briga ou mesmo uma rebelião!
Falando em solidão: é um fenômeno raro tratar, em casa, com a família, do que nos aconteceu durante um dia de trabalho no cárcere; todas as mazelas daquela função são tratadas em outros espaços de socialização que não ali “as mágoas são afogadas em outro lugar”.
Finalmente, quando as nossas condições de enfrentamento dos problemas cotidianos começam a falhar, sintomas como ansiedade, depressão, pânico advém; é inevitável. Somados a uma crença e a preconceitos de que “quem procura ajuda psicológica ou psiquiátrica é louco”, temos aqui o terreno propício para uma cronificação de sintomas que podem culminar num evento catastrófico para as pessoas e para seus próximos.
SIFUSPESP - Quais seriam os caminhos que o Estado poderia abrir para prevenir ou ao menos mitigar a ocorrência de tantos transtornos e sofrimento entre seus/suas servidores/as e, assim, reduzir o número de trabalhadoras e trabalhadores afastados e, consequentemente, de declínio na qualidade de vida dessas e desses que permanecem na lida para manter o sistema penitenciário funcionando?
Arlindo Lourenço - Creio que não é possível responder a essa pergunta sem se perguntar qual é o Estado que se tem hoje; como vem se constituindo; quais são as lógicas do funcionamento da burocracia estatal; como se desenvolve a relação Capital versus Trabalho em nosso país?
Nossa lógica de funcionamento estatal é verticalizada e altamente hierarquizada, seguindo o modelo da dominação que expropria o dominado de suas características mais humanas. É uma lógica perversa que trata o/a trabalhador/a da mesma como trata a própria política pública, ou seja, sem qualquer implicação de responsabilidade sobre seus efeitos que, na maioria dos casos, já sabemos quais são: pauperização, precarização, afastamento dos princípios de cidadania ou de democracia.
Mede-se a eficácia estatal sobre o controle das prisões a partir da quantidade de rebeliões que se enfrenta num determinado período de tempo e apenas isto. Pouco importa a pessoa do presos que sofre condições de desumanização constantes ou mesmo a figura do/a trabalhador/a, visto como mais um número dentro da grande engrenagem de moer ossos que é a prisão.
Nesse sentido, creio estar distante a possibilidade de transformação das condições de vida e de trabalho das pessoas que se encontram no cárcere (pessoas presas e trabalhadores/as), já que um diálogo honesto que aponte para saídas possíveis é praticamente impossível neste momento; entretanto, é tarefa nossa continuar resistindo e lutando para que essa transformação aconteça um dia desses. Daí que é quase um “salve-se a si mesmo”, ou seja, cada um/a buscando salvar-se no interior desse caos.
SIFUSPESP - Com relação à pandemia pelo Coronavírus, que devastou o Brasil e outros países pelo mundo, ocasionando milhares de mortes e milhões de casos de contaminações com sequelas consideráveis, como você tem visto a reação dos/as servidores/as penitenciários ao crescente número de óbitos e ao adoecimento de tantos colegas, pessoas presas, familiares e amigos? Eles que tanto são afetados por outras situações de violência no dia a dia e por vezes se dizem acostumados a elas, será que é possível pensar em alguma forma de preparo ou para um drama tão prolongado como tem sido este?
Arlindo Lourenço - Sei desses fatos pela imprensa e pela informação que recebo de colegas que ainda trabalham no cárcere. Sei, por exemplo, do percentual altíssimo de pessoas contaminadas pelo COVID-19 nas prisões (pessoas presas e trabalhadores/as), já que há grande concentração de pessoas nesses locais e o isolamento e distanciamento social preconizados pelas organizações mundiais de saúde são praticamente impossíveis de serem adotados.
Sei também de trabalhadores/as que têm seus pedidos de licenças de saúde negadas pelos profissionais peritos do estado, em que pese o estado deplorável de suas condições físicas, mentais e psicológicas; soube, ainda, que mais de trinta pessoas que trabalhavam nas prisões morreram em razão de complicações pelo COVID-19. Infelizmente, temos novamente aqui, a lógica perversa do estado autoritário brasileiro, negando direitos mínimos de cidadania e de existência ao seu povo.
Foucault já havia pensando num conceito que nos ajuda aqui, que é o de Biopolítica, ou o direito a que se advoga o poder dominante e seu braço político, o Estado, a decidir que vive ou quem morre. Creio que seria mais ou menos isto. É verdade também que nos acostumamos com o inadequado, com o insuficiente, com o que falta, infelizmente. E assim, naturalizamos o que não é natural, mas produto de uma luta de classes que ainda não tem data para terminar.
SIFUSPESP - Qual será a lógica presente no famoso “dia seguinte” - talvez com a segurança de uma vacina minimamente eficiente, quando o perigo da COVID-19 se afastar em relativo das vidas dessas pessoas? De que forma elas pensarão sobre tantas perdas, e em que sentido suas psiques vão conseguir retomar a um estágio anterior, quando a pandemia não se mostrava num horizonte possível?
Arlindo Lourenço - Essa é uma pergunta para a qual ainda não temos resposta; aliás, muitos estudos atuais vão na linha de que, ao terminarmos este momento delicado da Pandemia (que ainda não tem data precisa para terminar) e tivermos alcançado um limiar de imunização em boa parte da população do planeta, as sequelas de existir em condições tão diferentes das anteriormente vividas, serão enormes.
A angústia, a solidão e o pânico proporcionados pela Pandemia pelo COVID-19 deixarão boa parte da população sob os cuidados prolongados aos profissionais de saúde mental. Hoje já se sabe que aumentou bastante a procura por psicoterapias, em especial, as na modalidade à distância; as violências, na sua forma doméstica, dentro da casa e na família, também aumentaram; os casos de abuso infantil, feminicídio, pedofilia, dentre outros, ao que parece, também aumentaram em relação aos indices anteriores à Pandemia.
Se formos espertos, demorará um bocado até que decidamos frequentar um show numa grande casa de espetáculos; nossas vidas sofreram (mesmo que custemos a acreditar ou a aceitar) um baque do qual demoraremos um bocado para nos recuperar.
O mundo tal qual era antes parece que terá que ser repensado (e é muito bom que façamos isso, sob o risco de acelerarmos o já adiantado estado de extinção da vida neste planeta!). Isto é global, mundial, para todas e todos os humanos no planeta Terra. Algumas perdas desta momento são ireecuperáveis,eu diria. Com a Pandemia peloa COVID-19 temos a condição de repensar sob inúmeras questões humanas; infelizmente, poucos ainda estão afeitos a acreditar nisto!
SIFUSPESP - Enquanto dura a pandemia pelo COVID-19, grande número de servidores/as têm sido afastados por fazerem parte do grupo de risco para a contaminação. No entanto, existem outros/as trabalhadores/as que têm tido negados seus direitos a licenças a pedido - para tratamento psiquiátrico ou psicológico, por exemplo - e perdido boa parte de seus rendimentos (salário) devido à ação do governo do Estado influenciando nas decisões médicas das perícias que visariam, numa lógica perversa, a economia para o erário público estatal em detrimento da saúde do/a trabalhador/a. Quais os riscos que existem para alguém que segue trabalhando sem condições físicas ou psicológicas e que o fazem apenas para não entrar nessa espiral de perda de recursos financeiros. Isso levará a outros riscos, de mais sofrimento?
Arlindo Lourenço - A lógica que rege essas perícias negadas é a mesma lógica perversa que tem regido algumas das nossas relações no presente e, em especial, a lógica da dominação e da exploração do homem pelo homem, intensificada nas últimas décadas desde que o neoliberalismo tentou se tornar o modelo econômico-político dominante. Infelizmente, alguns profissionais que deveriam zelar pelos fundamentos éticos aprendidos nos cursos de graduação universitária, espremidos que estão na mesma lógica de moer ossos, acabam por alimentar o braço forte do Estado super-poderoso e extremamente perverso com os mais vulneráveis.
Enquanto os vencimentos de grandes políticos se encontram nas alturas e suas ausências no local de trabalho não são questionadas, o pequeno trabalhador/a, justamente aquele que vive do trabalho, vê-se em maus lençóis, tendo que enfrentar duras e angustiantes jornadas de trabalho em condições miseráveis de saúde, física e mental. A consequência de tal comportamento é mais adoecimento, mais tristeza, mais desgaste e, no limite, mais mortes dentre o universo de trabalhadores/as no cárcere, infelizmente. A menos que um milagre aconteça; que para um agnóstico como eu, não está, definitivamente, no nosso horizonte.