compartilhe>

Pesquisador Rafael Mantovani defende política de desencarceramento e afirma que qualidade do trabalho dos servidores só vai melhorar com redução do contingente de presos. Ao estudar saúde pública brasileira do século XIX, ele descobriu que mão de obra escrava e de detentos era usada em São Paulo para manter cidade “higienizada” enquanto cadeias eram imundas. “Saúde dentro das prisões segue tão precária quanto há dois séculos”, afirma

 

por Giovanni Giocondo

“Sabe-se há 200 anos que a prisão não funciona, mas por que a sociedade ainda aposta nela?” A pergunta é do doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), Rafael Mantovani, que em seu pós-doutorado na Faculdade de Saúde Pública da própria USP prosseguiu com suas pesquisas de doutorado sobre a história da medicina e da saúde pública no Brasil e encontrou uma história nefasta. O uso de mão de obra escrava e dos próprios presos - alguns deles também escravizados para serem punidos pelos senhores - para a limpeza das vias da capital paulista, enquanto “viviam” na completa sujeira das cadeias públicas.

Autor do livro "Modernizar a ordem em nome da saúde: a São Paulo de militares pobres e escravos (1805-1840)", publicado pela Editora Fiocruz em 2017, Mantovani concedeu entrevista exclusiva ao SIFUSPESP e destacou que, nos dias atuais, a prisão nada mais é que “um espantalho para a manutenção da ordem” e continua a ser um espaço para proliferação de doenças infectocontagiosas, entre elas o novo coronavírus. “O destrato para com a saúde dessas pessoas é sentido como natural e essa naturalização é uma herança da escravidão”, descreve.

Para o sociólogo, a manutenção desse espaço de aprisionamento nos moldes como sempre existiu - insalubre e superlotado - deve ser questionada inclusive por aqueles que trabalham no sistema. “Ser agente penitenciário e defender o desencarceramento não é uma contradição: além de um imperativo ético, é também uma forma de melhorar a qualidade do próprio trabalho”, explica.

Confira a seguir a entrevista:

SIFUSPESP – Em sua avaliação, a falência do modelo de encarceramento no Brasil e no mundo leva, necessariamente, à criação de um novo espaço físico para o cumprimento de penas diferente daqueles existentes atualmente? Como seria esse espaço, ou é preciso uma mudança macroestrutural, em termos de novas concepções de Justiça, Segurança Pública e Educação para que possamos superar essa história de violência endêmica, atentado contra a saúde pública e desrespeito aos direitos humanos no sistema prisional? Caso houvesse essa revolução, o que aconteceria com os policiais penais? E com os detentos?

Rafael Mantovani - É muito difícil dizer o que será feito. Caso as pessoas seguissem o que os estudos prisionais dizem a esse respeito, iniciariam o processo de extinção das prisões não apenas por ineficazes desde a sua criação, mas também por serem uma instituição que potencializa a ocorrência daquilo que a sociedade sonha eliminar: aquilo que passou a considerar “crime”. O ditado popular “prisão, escola do crime” se prova verdadeiro quando observados os estudos científicos a respeito do assunto: quanto mais aumenta a população carcerária, mais os conhecimentos a respeito de violências, infrações, violações são compartilhadas, socializadas e refinadas pela troca de experiências entre experts e novatos, solidariedades que têm como ponto cristalizado a ilegalidade cometida por todos eles em algum momento da vida. E a recusa da sociedade em aceitá-los novamente depois dessa experiência – sabemos o quanto a existência de antecedentes criminais é impeditivo na sociedade – delimita as pouquíssimas oportunidades para o egresso. Portanto, não é o indivíduo que não se “regenera” quando cai na reincidência, é a sociedade que dificulta qualquer atividade de quem já esteve preso. Dizem que o “criminoso” não trabalha em um serviço “digno”. Mas todos os serviços “dignos” exigem que o indivíduo não tenha passado pela cadeia.

A contradição é clara, mas a cadeia “funciona” em outro âmbito, que é o político: a demagogia punitivista é uma das ferramentas que mais garante votos, porque mexe com medos muito arraigados como o de corrosão social. Primeiramente, o discurso daquele que se diz defensor dos valores morais. Em defesa desses valores e, também, da estrutura hierárquica, divide “bons” e “maus” na sociedade. Parece leviano, mas a política joga o tempo inteiro com esse maniqueísmo e o inimigo a ser combatido é uma peça importante a ser construída retoricamente: o inimigo da ordem que o político promete controlar. Por fim, vem a promessa da preservação física dos indivíduos que parece estar sendo colocada em risco por esse inimigo. Contudo, a solução que está sendo dada para combater esse inimigo – seja ele o crime organizado, o tráfico de drogas, as facções – com base na guerra às drogas, no encarceramento, nas operações policiais, além de não ter dado certo, tem dois resultados: aumenta o grau de organização do inimigo que se diz querer combater e gera um grande número de vítimas.

Sobre a segunda parte da pergunta – como seria o mundo caso assumíssemos a falência do modelo de encarceramento? –, é impossível responder. Isso seria um debate de toda a sociedade. Até porque estamos caminhando no sentido contrário, de mais prisões, de mais punição, ainda que o resultado disso seja o aumento exatamente daquilo que esse discurso diz combater.

Mas, pensando em uma discussão sobre o que seria um modelo eficaz de justiça, precisaríamos observar outras práticas pelo mundo, não apenas o modelo dos países que historicamente nos espelhamos como França, Inglaterra e Estados Unidos. Esse modelo, como já se sabe, é fracassado desde a sua criação. Em outras formas de resolução de conflitos, talvez a questão do espaço, como colocado na pergunta, não seja tão primordial. Talvez nem mesmo a ideia de punir, que vem de uma moralidade religiosa de expiação. Nesse contexto, pode ser que não haveria lugar para policiais penais e detentos. Mas isso depende, de fato, de uma reformulação não apenas da nossa concepção de justiça, mas das nossas relações entre nós mesmos.

O fato de que os agentes penitenciários defenderem o desencarceramento não significa que eles perderiam os seus empregos, pois é um processo histórico e isso não aconteceria de um dia pro outro. Eles defenderem a bandeira do desencarceramento, além de um imperativo ético, seria uma bandeira para melhorar a qualidade do trabalho deles.

A questão que fica é: por que se sabe há 200 anos que a prisão não funciona e a sociedade ainda aposta nela?

 

SIFUSPESP – Nos seus estudos sobre saúde pública e utilização de mão de obra escrava dos detentos para a limpeza das vias da antiga cidade de São Paulo, você menciona que enquanto eram obrigados a trabalhar nesses serviços, os negros e pobres do início do século XIX que estavam detidos eram mantidos em condições sanitárias precárias dentro das cadeias. Gostaria que você contasse um pouco sobre essas condições das prisões naquele período e traçasse um paralelo sobre a semelhança das atuais instalações carcerárias.

Rafael - Trata-se de uma das nossas atordoantes permanências. Desde o início da história das prisões, e também da história do Brasil independente, as condições são subumanas. Não se via o chão da cela pela sujeira e nem vestimentas para cobrir todo o corpo dos presos, não havia cuidado com os doentes, misturavam-se os que tivessem qualquer tipo de doença, mesmo as contagiosas, como varíola, sarampo e lepra. A comida era servida apenas uma vez ao dia, nem todos conseguiam comer e, portanto, a desnutrição era a regra.

A Câmara Municipal era obrigada a fazer comissões de visitas a alguns estabelecimentos disciplinares, entre eles, a prisão. As descrições eram sempre horrendas, sempre denunciando o absurdo da situação em que viviam os presos. Chama a atenção o relatório da comissão de 1836, em que os redatores dizem que poderiam perfeitamente falar sobre os inconvenientes da prisão, o número desproporcional de presos, pedir alguma reforma e melhoramento como já tinham feito todas as outras comissões, mas como já se sabia de tudo isso e nunca se tomou nenhuma providência, eles não iriam “cansar a atenção” da Câmara.

Sobre os trabalhos dos presos no século XIX, eram detidos os sentenciados, mas também escravos que os senhores queriam que a municipalidade punisse por algum motivo. Durante a maior parte do período que eu estudei, os presos de galés – assim eram chamados – eram usados pela cidade para serviços de reparos e limpeza. São Paulo era considerada uma cidade extremamente limpa pelos visitantes. Incomparavelmente mais limpa que o Rio de Janeiro e mais asseada até que Paris. Também eram contratados trabalhadores pobres por jornadas diárias. Portanto, a condição de salubridade alcançada pela cidade de São Paulo era, em grande parte, obtida pelo trabalho daqueles que não tinham nenhuma no espaço social reservado para eles, e tampouco cuidado algum com relação à sua saúde e alimentação.

Sabe-se que, hoje, as condições das prisões seguem terríveis, que morre um número indecente de presos por doenças tratáveis dentro delas. Por que, então, no Brasil, sabemos há mais de 200 anos sobre as condições terríveis das nossas prisões e elas continuam da mesma forma? Qual é a demanda de penitência muito além da punição legal que é atendida com isso?

A prisão, em primeiro lugar, tem a sua importância naquele cálculo político já mencionado. Porém, ela também serve como uma espécie de espantalho para a manutenção da ordem. No século XIX, tratava-se da ordem escravista, portanto, manter uma sociedade em que a maior parte daqueles que seriam por ela punidos não eram nem vistos como pessoas, eram propriedades. Nem suas vidas lhes pertenciam. Como exigir que a prisão respeitasse qualquer espécie de dignidade, sendo que a vida em sociedade daquelas pessoas não tinha qualquer dignidade? Ora, um castigo, para funcionar, precisa ser sentido como penoso. Portanto, a prisão precisaria ser brutal, inclemente, hedionda, para ser sentida efetivamente como castigo por aqueles já sentiam a própria vida cotidiana como uma espécie de castigo.

A prisão de hoje, igualmente serve como espantalho para a manutenção da sociedade brasileira que, dependendo do ranking, é colocada como a mais desigual do mundo. Toda uma população empobrecida  - considerada supérflua não apenas pelo poder público, mas também por boa parte do senso comum devido a uma elaboração coletiva da ideia de meritocracia -, é cotidianamente despojada dos seus direitos civis e sociais na sua circulação urbana, educação, saúde, lazer, habitação e perspectiva de futuro. Por que a nossa instituição de punição garantiria os direitos que a sociedade não garante e nem ao menos tem um plano com metas de quando pode vir a começar a garantir?

 

SIFUSPESP – Existiria na atualidade, portanto, uma espécie de escravidão moderna, na qual a população carcerária é utilizada para trabalhos aviltantes dentro e fora das unidades prisionais, com baixos salários, e ao mesmo tempo fica distante da reinserção social e da ressocialização, nos mesmos moldes daquela que foi vigente enquanto durou o período escravagista?

Rafael - Essas pessoas estão submetidas a condições aviltantes antes e quando estão na prisão, dentro e fora dela. Isso é sentido como natural e essa naturalização é uma herança da escravidão.

Contudo, pragmaticamente falando, estamos tratando de pessoas de carne e osso presas que precisam sair dali o quanto antes, portanto, se existem mecanismos como remição de penas que podem ser usados para encurtar o seu período dentro do sistema prisional, tanto melhor. Existe, por exemplo, a Recomendação 44 de 2013 que diminui o tempo de encarceramento por estudo. Convém usar esses mecanismos.

Mas se formos questionar a instituição carcerária como a promete o Estado democrático de direito, no que diz respeito às garantias de direitos dentro dela e nas suas promessas de ressocialização, ela não garante os direitos dos detentos à dignidade, à saúde, educação, assistência jurídica, acesso ao trabalho remunerado e tampouco atinge o seu objetivo manifesto. Se não atende nem um e nem outro, a força coercitiva que ela exerce sobre os detentos não pode ser considerada legítima.

 

SIFUSPESP – Quais são os riscos à saúde que a permanência em penitenciárias superlotadas, com baixa entrada de luz e alto índice de umidade, entre outros problemas permanentes, oferecem tanto aos sentenciados quanto aos funcionários que trabalham no sistema? Que doenças são mais comuns e por que se proliferam tanto nas prisões? Você acredita que a contratação de mais funcionários no setor de saúde, entre eles médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e dentistas, entre outros, poderia colaborar para reduzir o grande número de doenças infectocontagiosas nas penitenciárias?

Rafael - A sua pergunta parece as mesmas questões colocadas por René Villermé, quando escreveu, em 1820, um texto sobre esses mesmos problemas nas prisões de Paris. Também se parece com todos os textos que li sobre as prisões brasileiras do século XIX. Superlotação e excesso umidade sempre causaram e continuam causando sérios problemas pulmonares, como tuberculose, nas populações carcerárias e empobrecidas da cidade. Além das alergias e dores de cabeça.

Hoje, as doenças mais preocupantes dentro das cadeias são Aids, sífilis, hanseníase  - antes chamada de lepra - e infecções de pele, doenças tratáveis, mas negligenciadas por estarem ali, graças ao status de “matáveis” que os presos têm no país.

Mais médicos, enfermeiros, auxiliares, dentistas, psicólogos, medicamentos, cuidados em geral, sem sombra de dúvida diminuiriam o número de óbitos.

Mas, de acordo com o pensamento punitivista, essa seria uma política considerada exitosa? A questão que precisa ser posta é a seguinte: quem deixa de destinar os recursos necessários para impedir essas mortes deixou de fazê-lo por desleixo ou por irresponsabilidade? Não. É deliberado. Ora, a política é de “mirar na cabecinha”, é de “atirar para matar” e isso é dito com todas as letras, isso, sim, ganha votos. Hoje, foto mostrando a penúria das condições dos presos recebe elogio e aplauso de comentarista de notícia online. A demagogia punitivista estava enrustida até alguns anos atrás. Agora, ela ganhou a eleição.

Historicamente, as prisões foram sempre um foco preocupante quando eclodia uma epidemia, isso em tempos anteriores ao encarceramento em massa. O sistema prisional do Distrito Federal está tendo uma importância decisiva e a resposta do poder público tem sido eficiente?

Pensando em São Paulo, existe alguma possibilidade de que a quantidade de agentes penitenciários consiga dar conta da imensa população carcerária pela qual é responsável em tempos normais? Não. Imagine-se agora, então.

 

SIFUSPESP – No que se refere à pandemia do novo coronavírus, que vem atingindo com força todo o mundo e o Brasil, mas que pode ser trágica para a realidade das prisões, qual a sua opinião sobre as medidas que já foram tomadas pelo Estado e quais outras ações deveriam acontecer para que o ritmo da proliferação da doença fosse reduzido? O SIFUSPESP pede na Justiça a testagem em massa dos servidores e da população carcerária, além da suspensão das transferências de detentos entre unidades – a suspensão das visitas, da entrega de jumbo e uso de EPIS já foram adotadas. Você acredita que essas medidas surtiriam efeito?

Rafael  -   Uso de máscaras, luvas, álcool 70% e isolamento social não são questão de opinião. Eu não tenho como acreditar, são medidas cuja eficácia estão cientificamente comprovadas até o momento. Contudo, tudo isso será muito paliativo perto da bomba-relógio biológica anunciada. Há muito tempo deveria ter sido iniciada uma política emergencial de desencarceramento, começando pelas indicações do ministro Marco Aurélio de Mello, do dia 17 de março.

Chegando a pandemia de COVID-19, em local de forte epidemia de doenças pulmonares, será uma catástrofe. E cabe lembrar que, depois das 56 mortes ocorridas na rebelião de um complexo penitenciário de Manaus e das 31 ocorridas em Roraima em 2017, um deputado, atualmente senador pelo PSL, “brincou” em uma rede social: “Manaus 56 X 30 Roraima. Vamos lá, Bangu! Vocês podem fazer melhor!”. Publicação curtida, republicada, concordada por muitos indivíduos e referendada por um projeto de país que saiu vencedor nas últimas eleições.

O resultado desse “jogo”, para a felicidade desses aí, será bem maior. Papuda e adjacências deveriam ser a preocupação central do Distrito Federal, por terem se tornado o principal foco de contágio. Uma política séria e efetiva para salvar vidas será implementada? Deixo essa para que o leitor responda. Não há álcool gel suficiente que impeça uma política genocida dessas.

O SIFUSPESP somos todos nós, unidos e organizados. Filie-se!

Fique por dento das notícias do sistema! Participe de nosso canal do Telegram:https://t.me/Noticias_Sifuspesp