Por Marc Souza - Agente Penitenciário e Escritor
É hoje.
Hoje.
Quanto tempo será que se passou?
Para mim. Pra mim parece que foi ontem.
Ainda sinto o cheiro de sangue. Um cheiro estranho, metálico, cheiro de ferrugem. Ainda ouço os gritos de desespero e de dor. Quando fecho os olhos ainda vejo aquelas imagens.
Será que um dia hei de esquecê-las?
Será que um dia os pesadelos acabarão?
É hoje. É hoje.
Não sei se estou preparado. Bem, na verdade, a última coisa que estou é preparado para voltar.
Os gritos de desespero me perseguem. Aqueles olhos desesperados insistem em me observar. Eu... Eu não consigo fugir. Eu... Eu não consigo esquecer.
Aquelas facas improvisadas, sujas de sangue. De inocentes? De culpados?
Aquelas pessoas mortas, estraçalhadas, odiadas.
Aqueles jovens vivos, mas... mortos. Mortos por dentro, sem alma, sem coração.
Deus? Deus? O que aconteceu naquele dia?
Por quê? Por quê? Por quê?
É hoje.
Hoje tudo voltará ao normal.
Mas o que é voltar ao norma?. Será que um dia voltarei ao normal?
Será? Será?
Foi num dia assim que tudo aconteceu. Um dia comum, normal. Um dia de trabalho.
Então de repente o caos se fez presente: A rebelião.
Não queria lembrar. Queria esquecer aquele fatídico dia. O pior.
Meu Deus!
Aqueles gritos. Aqueles olhares desesperados. Aquele choro.
Tanto sofrimento. Tanto horror. Quanto terror.
Eu... eu não consigo esquecer.
Hoje, depois de tanto tempo, sinto o cheiro de sangue, ouço os gritos de pavor. Vejo aqueles jovens.
Mesmo depois de tanto tempo, sinto a lâmina daquela faca no meu pescoço, apertando, apertando, apertando, sinto a morte à espreita, me observando.
Mesmo depois de tanto tempo, parece que foi ontem.
Mas hoje, hoje é um novo dia. Hoje tenho que voltar.
Não sei se consigo. Na verdade, acho que não.
Meus amigos dizem que nada mudou: A população carcerária aumentou.
Depois daquele dia muitos funcionários sequer voltaram ao trabalho.
Faltam funcionários, sobram presos e problemas.
Quanto a mim? Tenho que voltar, tenho uma família para cuidar. Tenho uma profissão a honrar. Sei que preciso de mais tempo, mas, fazer o quê?
Apesar de não estar liberado para o trabalho pelo médico, minha licença foi diminuída, cortada pela metade. O pior, é que um profissional que não me consultou, que sequer me conhece, que sequer sabe pelo que passei foi o responsável por isso. Tenho que trabalhar, preciso do dinheiro. Preciso sobreviver.
Sobreviver é o que faço.
Sobrevivo aos salários baixos, à falta de condição de trabalho, à superpopulação carcerária. Sobrevivo aos ataques e ameaças de morte e às agressões físicas e verbais.
Sobrevivo, simplesmente sobrevivo.
E agora, sobrevivo com meus medos e inseguranças causados por uma situação limite à qual vivo exposto.
Situação causada pela omissão do Estado que insiste em amontoar pessoas nas cadeias em situações totalmente desumanas, abandonando-as à própria sorte, sujeitas a todos os tipos de doenças e violência. Situação causada por benefícios e processos atrasados, não julgados, amontoados e esquecidos. Situação causada por uma política penitenciária totalmente omissa e inconseqüente.
Hoje é o dia.
A partir de hoje, no trabalho, não estarei mais só. A partir de hoje estaremos, para sempre, eu e meus fantasmas. Eu e os meus medos. Eu e minhas lembranças.
Lembranças que carregarei para sempre. Fantasmas que me farão companhia. Me assombrando e me lembrando a natureza humana. Os gritos de desespero. Os olhos assombrados. As dores sofridas. Tudo isso faz parte de mim agora. É parte de mim agora.
É hoje. Hoje estarei de volta.
Sem preparo. Sem apoio do governo. Sem condições.
Mas, com uma convicção, não foi em vão.
Todo o sofrimento que vi e vivi, toda a dor que senti, todo o desespero que presenciei, todo o medo que senti, e que agora fazem parte de mim, me deixaram mais forte.
Me fizeram um ser humano melhor.
Hoje quando as portas se fecharem às minhas costas, estarão lá, eu e minhas cicatrizes, eu e as minhas dores, eu e a minha vontade de servir à minha comunidade. Mesmo que esta comunidade sequer me conheça. Mesmo que esta comunidade, sequer, me reconheça. Mesma que esta comunidade, sequer imagina o peso de todas as dores que trago no coração.
Marc Souza
Agente Penitenciário e Escritor
Diretor Sifuspesp