• Kátia Roberta Rodrigues Pinto

    Kátia Roberta Rodrigues Pinto

      Kátia Roberta Rodrigues Pinto é policial penal, trabalha na Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) desde 2008.  Atualmente é lotada na Penitenciária “Nestor Canoa” I, em Mirandópolis, tendo trabalhado anteriormente no Centro de Detenção Provisória Feminino de Franco da Rocha e na Penitenciária Feminina de Tupi Paulista. Com licenciatura em Letras, faz mestrado em Linguística pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, onde desenvolve dissertação sobre os usos do verbo pagar na linguagem penitenciária. 
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Em entrevista ao “Fora das Grades”, a nova colunista do sindicato, lotada P1 de Mirandópolis, Kátia Roberta Rodrigues Pinto, mestranda em  Letras, fala de sua pesquisa sobre os usos do verbo pagar levando a linguagem penitenciária à academia. Os desafios da policial penal para conciliar carreira, estudos e família e os espaços às mulheres no sistema estão entre as pautas na reportagem e no vídeo produzido pelo SIFUSPESP. Envie também sua história ao “Fora das Grades”

 

Por Flaviana Serafim

“Cada um tem algo dentro de si e que se pode buscar, não precisa aceitar a situação de ser mero espectador. Cabe a nós sermos autores da própria história”. É o que defende a policial penal Kátia Roberta Rodrigues Pinto, da Penitenciária “Nestor Canoa” I, em Mirandópolis.

Com licenciatura em Letras, foi professora de língua portuguesa por dois anos em escola pública antes de entrar na Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), em 2008. Faz mestrado em Letras (Linguística) pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), onde leva a temática do sistema prisional para dentro da academia com um recorte inédito: os usos do verbo pagar com seus diferentes significados, peculiaridades e usos na linguagem penitenciária.

Casada com um policial penal e mãe de meninos gêmeos, Kátia atuou, anteriormente, em unidades prisionais femininas, Centro de Detenção Provisória Feminino de Franco da Rocha e Penitenciária Feminina de Tupi Paulista, até a transferência, em 2018, para a masculina P1 de Mirandópolis. Nesta entrevista para o Fora das Grades, ela trata do desenvolvimento da pesquisa, dos desafios de ser mulher policial penal, de conciliar carreira, estudos e família, do enfrentamento ao machismo e da luta pela valorização da categoria (confira a outra parte do bate-papo no vídeo abaixo).

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Trajetória

Com base nas próprias experiências, ela destaca que quer mostrar aos servidores penitenciários que não se deve aceitar a situação em que vivem, pois todos têm anseios dentro de si e que, muitas vezes, ficam esquecidos no passado.

“Podemos ir além, ir atrás dos nossos sonhos para que possamos melhorar como seres humanos, consequentemente melhorar nosso ambiente de trabalho e mudar a realidade em que vivemos. No meu caso, foi voltar a estudar, mas isso pode acontecer de maneiras diversas”.

O sonho de voltar aos estudos foi adiado por anos. A prioridade da policial penal era ser transferência de Franco da Rocha para o interior paulista e assim voltar à convivência com a família. Depois que os filhos completaram cinco anos, ela pôde recomeçar dando aulas na capacitação técnica profissional da Escola de Administração Penitenciária (EAP). Na sequência, fez especialização em Estudos da Gramática da língua Portuguesa e logo ingressou na UFMS, primeiro como aluna especial do curso de pós-graduação, depois como mestranda e agora na reta final da defesa de sua dissertação para obtenção do título de mestre. Dentre seus trabalhos de pesquisa, consta a aceitação de um capítulo de livro que será publicado em formato e-book com a temática do contexto penitenciário paulista.   

Verbo pagar: a linguagem penitenciária na academia

Apesar dos muitos estudos acadêmicos com assuntos ligados ao sistema prisional, a linguagem penitenciária é pouco explorada, afirma a policial penal, e daí a escolha do tema que diferencia a pesquisa de mestrado de Kátia, que é analisar e explicar os outros significados associados ao verbo pagar na linguagem penitenciária.

Da acepção de transferência - pagar algo a alguém -, o verbo pagar assume outros sentidos.  “De acordo com a semântica do verbo, há a ideia de dívida de alguém que cometeu um ato ilícito estando, portanto, pagando uma dívida que tem com a sociedade. Infringiu normas ou leis sociais e cumpre pena com privação de liberdade, logo está pagando por um crime que cometeu para a sociedade. A partir daí se tem uma nova acepção semântica do verbo”, explica a linguista Os diferentes significados estão na linguagem prisional em expressões como “pagar a boia”, “pagar medicação”, “pagar Sedex”.

No caso dos detentos, Kátia afirma que há necessidade de criar uma linguagem própria como instrumento de defesa. “Quando acabam utilizando essas palavras, o que muitos entendem como gíria, jargão, os sentenciados/ detentos desenvolvem um mecanismo de defesa. É proteção, é para que possam se comunicar dentro daquele ambiente. Ainda que para outras pessoas não faça o menor sentido, trata-se de um instrumento de defesa”.

Entre os servidores, dizer “pagar plantão” é comum para expressar a troca, a transferência de dia de plantão, neste caso firmando um acordo que é a obrigação de trabalhar no lugar de outro num dia.

Existem outros trabalhos desenvolvidos em dissertações que abordam temáticas próximas a de Kátia, uma nas Ciências Sociais e outra na Psicologia, mas que não tratam a linguagem no contexto penitenciário em sua totalidade nem na área da linguística e, sim de forma estrita aos aspectos sociais. Desta forma, a linguista acredita que seu trabalho acadêmico possa ser instrumento para que outros pesquisadores ampliem o tema.

“Estudar a linguagem é trabalho de uma vida. O linguista se concentra num objeto de pesquisa, num aspecto da língua e tenta descrever as particularidades daquele objeto adotando uma vertente teórica que corrobora com sua área de pesquisa. Penso que o que estou fazendo agora vá além do que estou desenvolvendo. Seria interessante que outros linguistas e estudiosos de outras áreas pudessem desenvolver uma teia de estudos, num trabalho conjunto voltado a mais aspectos desse contexto que é muito amplo e muito rico”, pontua.

Transferências e frustrações longe da família

“Dar continuidade aos projetos pessoais e profissionais é uma questão complicada. estar longe de casa é um dos fatores que impedem o agente de segurança ir além. O ambiente prisional acaba minando, coloca muitos empecilhos para que o profissional possa se desenvolver, se aprimorar.”, critica a policial penal. 

Kátia ressalta que os servidores entram no sistema prisional com sonhos e perspectivas, que todos querem oferecer o melhor de si, trabalhando com caráter e honestidade, além da atuação como profissionais inteligentes e competentes. 

Porém, como muitos trabalham em unidades prisionais distantes de casa e não conseguem transferência, o sistema prisional se torna frustrante, segundo Kátia e a necessidade de estar perto da família faz que com deixem de lado seus sonhos e projetos para poderem dar sustento à família. 

Quando finalmente conseguem a transferência, ela diz que “muita coisa já passou” e que há uma sensação de estranhamento na volta para casa, no recomeço com a rotina familiar.

Talentos escondidos

Kátia destaca que há muitos talentos escondidos entre os trabalhadores e trabalhadoras da SAP e que seria preciso um olhar mais sensível para enxergar o servidor como alguém além de um número, de um crachá. “Muitos têm formação acadêmica e possuem conhecimento técnico que poderia ser valorizado ‘na’ e ‘para’ a própria Secretaria, além dos inúmeros profissionais com habilidades fantásticas que ficam a margem.”, explica a policial penal sobre a diversidade de talentos na categoria.

Entre os exemplos, ela cita servidores que idealizaram sistemas de automação da penitenciária, com projeto levado às unidades do Paraná e que pode ser levado às federais, resultado do trabalho de uma equipe de policiais penais de São Paulo.

“Imagine o quanto de recurso foi economizado. Já imaginou se o Estado tivesse que abrir licitação para isso? Seria muito mais caro”, afirma. É essa essência que deve ser expandida: os agentes trabalhando e sendo valorizados ao desenvolverem suas habilidades para o Sistema como um todo, tornando suas condições de trabalho muito melhor. A opinião, inclusive, de quem está inserido no meio deve ser considerada! Com melhorias no Sistema, todo mundo acaba ganhando”, completa.

Contra o machismo no sistema: as mulheres podem

Há dois anos numa unidade masculina, Kátia diz que há preconceito com as mulheres por acharem que elas não são tão capazes, o que classifica como “uma grande ilusão”. Isso impõe à servidora fazer mais “porque é uma maneira de provar, de constar, de deixar claro que uma mulher é capaz. Qualquer coisa que um homem possa fazer, a mulher também pode”.

Ser mulher, dona de casa, esposa, trabalhar e estudar é extremamente difícil, ressalta observando se um homem nessa condição daria conta de tantos afazeres. “Será que eles conseguiriam administrar? É possível. Então, porque tanta dificuldade em permitir que nós, mulheres, consigamos ocupar determinados cargos que nossos colegas homens ocupam? Nossas habilidades em gerenciar tudo o que nos cabe já não é prova de que podemos, sim, realizarmos com competência cargos de responsabilidade?”.

Resultado de uma cultura patriarcal, enfrentando tripla jornada, em alguns setores recebendo salário menor que um homem na mesma função, as mulheres acabam prejudicadas, têm dificuldades de acesso à ascensão profissional e enfrentam desigualdades, o que não garante as mesmas oportunidades nos postos de trabalho. 

Kátia reconhece que o trabalho na portaria “é uma realidade atípica, infelizmente, e gostaria que isso fosse mudado, que oportunidades fossem dadas. Será que há funções que exigem características próprias de um homem? Estou esperando alguém responder se isso existe de fato”, conclui.