Cláudia Raulino

Agente de Segurança Penitenciária há 27 anos, é formada em sociologia pela Fespsp
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 Por Claudia Raulino, Agente de Segurança Penitenciária e socióloga

 

O prisma dos Direitos Humanos em uma abordagem da profissão do servidor prisional nunca se fez tão necessário quanto hoje, quando as questões que envolvem esses direitos serão correlatas às peculiaridades  vivenciadas nos interiores dos presídios. Memórias de desamparo, abandonos e também superações daqueles que mediam o olhar do preso do "fundão da cadeia” com o portão da  rua são parte desse universo.

Embora estejamos vivendo em um país onde perdura o estado democrático de direito, os resquícios da ditadura se perpetuam nos corredores das unidades prisionais paulistas, tal qual um mofo que exala o cheiro característico impregnado pela umidade advinda do autoritarismo do passado que certamente evoca o espírito da justiça cega, inócua e perversa.

O encarceramento ainda é o método tido como o mais eficaz para combater o crime e dar à sociedade a sensação de punitivismo e segurança. O governo de exceção é naturalizado, e  essa metodologia para lidar com o crime é predominante.

De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias(Infopen), entre 2000 e 2014, a taxa de prisões aumentou 460% entre mulheres, sendo que 63% delas foram enquadradas no crime de tráfico de drogas. Entre os homens, o aumento na taxa de encarceramento foi de 220% no mesmo período, com 25% dos detentos do sexo masculino tendo sido condenados por tráfico.

A superpopulação e o crime organizado deram novas máscaras para o sistema penitenciário. Fica claro que existem diversos aspectos  relevantes para desenhar esse  cenários caótico. Porém, a ameaça ao Estado democrático de direito e aos Direitos Humanos é questionada não somente pelos presos. Emerge nesse cenário um novo ator nesse clima de tensão e horror: o servidor do sistema prisional.

 

Quem zela pelos direitos do servidor?

Os Direitos Humanos são tratados pelo senso comum como "coisa de bandido". Nesse caso, tal sentido comum, muito frequente entre os brasileiros, parte do pressuposto que em um contexto penitenciário as violações desses direitos em sua grande maioria seriam praticadas pelos servidores prisionais. Ledo engano.

A realidade nos mostra que na verdade o desrespeito aos direitos humanos dos trabalhadores penitenciários é muito mais frequente. Isso porque as organizações criminosas protagonizam um sistema capaz de produzir seus próprios códigos, definindo regras e procedimentos rígidos seguidos com extrema disciplina pelos integrantes das facções.

Infelizmente, tal ação é legitimada no dia a dia com os assassinatos de servidores, uma das exigências feitas por parte do crime para compensar falhas cometidas pelos detentos.

As facções mais conhecidas do Brasil estão divididas em pelo menos treze grupos, se considerados somente os ambientes da maioria das unidades prisionais paulistas. Segundo o autor Danilo Fontelnele Sampaio Cunha, em Criminalidade Organizada : Antigos padrões, novas tecnologias, o Primeiro Comando da Capital(PCC) chega a ter 90 mil simpatizantes dentro e fora das prisões.

Visto que a prática autorizada de violência ou o uso moderado da força física contra alguém  que se encontra como um desvalido de seus direitos - no caso, o preso, e investida por aquele que de certa forma detém o poder, a isso sim podemos chamar de herança ditatorial. No entanto o atual cenário nos mostra que o algoz está entre nós e não usa uniforme.

O que a sociedade espera com o aprisionamento é o que ela exige do Legislativo. O que a sociedade recebe dos presídios é o que tem de resultado do seu conceito de Justiça.

Ora, se o servidores prisionais são incumbidos de zelar pela dignidade do preso, quem é que zela pela integridade do servidor dentro e fora das prisões?

 

Como o servidor faz valer os Direitos Humanos? Como o agente é o amálgama da segurança e da disciplina como um exemplar profissional se esses espaços estão performados vultuosamente com regras dadas pela “bandidagem”? Como o faz se corpos mutilados são arremessados pelos muros, deixando escancaradas as mazelas institucionais e a miséria humana que se revelam como um todo.

Ainda que se justifique que os conflitos são entre eles( presos), fica explícito no discurso da sociedade brasileira o antagonismo infantil  de "polícia versus ladrões", condizente com o senso comum. Sem pudor algum,  uma frase indigna e institucional acalma o terror social: “Tratava -se apenas de um acerto de contas”.

A pergunta que não cala permanece: De quem é essa conta e quem faz parte dessa equação?

Do servidor prisional, que tem como garantia seu mínimo salário e sua estabilidade profissional, já que a emocional jamais se estabelece.

 

Dos direitos dos agentes prisionais

Segundo Ricardo Brisola Balestreri, ex-secretário da Segurança Pública Nacional e atual Secretário da Segurança Pública e Administração Penitenciária(SSPAP) de Goiás, existem pontos importantes sobre os Direitos dos policiais quando acessamos informações sobre os Direitos Humanos na legislação brasileira.

Por esse motivo, achei interessante estender esse diálogo para o servidor prisional. Contudo, serei fiel ao contexto do autor, ponderando que o tópico que ele destaca como sendo o 4° eu elenquei como o 1°, além de trocar a palavra “policial” por “agente”, o que atualmente me parece um contrafluxo, mas para fins didáticos foi necessário.

1º Logo, os Direitos Humanos devem fazer parte do nosso cotidiano, tendo como elemento primordial para o Agente construir uma carreira digna ser prescindível que ele sinta orgulho de sua profissão e consiga enxergar o seu valor e sua contribuição

2° O agente é antes de tudo um cidadão, e por essa razão deve se identificar com seus direitos e deveres e também com os direitos e deveres daquele que se encontra em condição de prisão, que precisa ser seu entendimento essencial.

3°Segundo Balestreri, a qualificação do agente é primordial, pois o agente emblematiza o Estado, e é seu porta voz. O impacto sobre a vida do outro é essa representação e pode ser entendida pelo bem e pelo mal. O agente é portanto a autoridade de corpo presente no âmbito da força e da lei.

 

 

Claudia Raulino, Agente de Segurança Penitenciária e socióloga

 

Quinze anos se passaram desde a implosão da Casa de Detenção do Carandiru, conhecida com o símbolo do fracasso do sistema penitenciário que ao longo de quarenta e seis anos sobreviveu ao ritmo de vida imposto pela dialética do bem e do mal.

Sua estimativa de vida forjada tal qual a expectativa de vida do agente penitenciário: 46 anos. Sua implosão foi um marco na história do Sistema Penitenciário Paulista contra o crime.             

Sim, o prédio colossal foi ao chão e a impressão foi a de que o projeto do crime organizado  desmantelou-se juntamente com os entulhos daquela instituição anacrônica e surreal. Vista aos olhos nus da sociedade cega que seguia no cotidiano da Estação Carandiru.

Meses antes da implosão, presenciei uma reunião no Sindicato dos Funcionários do Sistema Prisional do Estado de São Paulo(SIFUSPESP), envolvendo agentes da Casa de Detenção, então preocupados com seus colegas, ou os GPS(guardas de presídio), como eram chamados.

Eles queriam saber das decisões que ainda não haviam sido publicadas em Diário Oficial. O que pude ver nessa ocasião foi que, mesmo o local sendo visto como o pior de se trabalhar,  era o lugar onde esses agentes davam o seu melhor. Vi uma categoria unida por um propósito único, preocupada com o que iria acontecer com todos.

Estavam tristes porque aquele espaço, embora degradante, foi o espaço onde conheceram o melhor do seu colega de trabalho, a união e a preocupação de saber que seu amigo estava lá dentro.

Sentia-se na pele e na carne a sensação de entrar sem a certeza de que iriam sair. Um depositava no outro a expectativa da sua proteção e a alegria estampada nos olhos daquele que iria abrir o último portão ao término ao plantão.

Agentes, técnicos, oficiais, advogados, diretores e todos outros se viam como um. Todos os postos compunham um único lugar: O lugar  do profissional  prisional que queria um sindicato forte e não um colete à prova de bala.

Não há de se negar que havia notícias de falecimento, de profissionais que sucumbiram à profissão fazendo parte da estatística sobre a estimativa de vida do Agente de Segurança Penitenciária(ASP), que era de 45 anos. Colegas que foram vítimas de ciladas não da bandidagem, mas da própria vida que cobra um preço alto por trabalhar em um lugar insalubre e que oprime física e mentalmente o profissional.

Os  presos foram pulverizados em vários Centros de Detenção Provisória(CDPs) por todo Estado de São Paulo, assim como os agentes. Pequenas Casas de Detenção foram instituídas e ocorreu que o crime organizado expandiu seu território. Entretanto, o mesmo não aconteceu com o ASP, que se dividiu, embora o contingente de funcionários tenha se ampliado. Dividiram-se também seus interesses e suas funções, limitou-se seu campo de ação, diferenciou-se sua realidade .

O que deveria ter nos fortalecido enquanto categoria prisional nos restringiu enquanto sujeito político, enquanto classe sindical. A luta, que anteriormente era apenas por reajustes salariais, hoje é muito mais árdua. Trata-se de sermos respeitados em nossas funções e nossas armas, de sermos vistos e lembrados. Um tempo de luta para não sermos moedas de troca, para não sermos reféns no dia a dia do sistema.                        

Não se trata de saudosismo, até porque o desarranjo da Detenção afetava vários aspectos da sociedade como um todo.Trata-se, na verdade, de alinhar os sentimentos de uma categoria que tem força, garra, coragem, inteligência, técnica e visão. Uma categoria que tem sonhos, de se aposentar inclusive. Mas não só isso, o  sonho de sermos reconhecidos após colaborarmos durante tanto tempo para a sociedade em termos de segurança nacional.

Temos o sonho de viver bem mais que a expectativa de até 45 anos(segundo estudo realizado pelo Instituto de Psicologia da USP, em 2011), semelhante à existência da Casa de Detenção, que durou 46. Afinal de contas, somos a artéria desse corpo presente (prisão) em todas as sociedades. E até que se encontre o antídoto de não as ter mais, ainda somos nós, todos os profissionais prisionais, aqueles que temos o aporte para as possíveis soluções para os problemas desse sistema.